"Não gosto de ver correr cavalos nem touros. Eu gosto de ver correr o tempo e as coisas. Só isso." Machado de Assis

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O TROCO E A TROCA

Era o tempo do Rei – como disse Manoel Antônio de Almeida e ainda diz Ruy Castro – e aquele país estava dividido em províncias. Havia as províncias do sul, as do norte, as do leste e as do oeste. O norte era pobre e eternamente explorado, mas de lá vinha a inteligência de alguns sábios, a força de muitos negros e a esperteza de uns tantos Malazartes do sertão. Vinham todos com as matas e com os cerrados. Eram acima de tudo fortes, como diria Euclídes, o velho. Era o tempo do Rei!


Mas o mundo daqueles idos – tempo em que os bichos falavam – não era apenas época de reinados e províncias, era também o tempo da revolução e da mudança. Alguns tinham objetivo de levar aquele Reino para a modernidade, para a igualdade e para o desenvolvimento. Mas as províncias do norte eram o oposto disso. Eram governadas e guiadas pelo atraso; lá reinava a pobreza, a corrupção o clientelismo e o subdesenvolvimento.

Mas as coisas da política – principalmente em um reino onde os bichos falavam – tinham sempre formas impensáveis, até irracionais. Justo daquele lugar, da mais pobre de todas as províncias, surgiu quem se apropriasse do movimento. Ali, onde diziam os locais “até boi voava, e de asa quebrada”, surgiu quem estivesse disposto a ser guiado pelas forças – e fazer-se de guia delas – rumo à democracia revolucionária que encabeçava o Rei.


Mais que estranho e incoerente, não? Diziam todos os bichos, e todos os homens.

Era um velho Marquês que aliava o discurso intelectual do norte, à esperteza que também campeavam por ali. E ele surgiu como um primeiro e o maior dos democratas. Logo ele, que usava e abusava da arte de ser imperial, foi um dos que mais emprestou sua lábia - e sua habilidade nas coisas “por debaixo dos panos” - aos democratas que nasciam.


E justo ele, que era um déspota e um larápio conhecido naquele canto provincial, pousou em todo reino como o homem da modernidade, do avanço e da intelectualidade. Logo ele que era useiro e vezeiro em permitir que crianças padecessem de fome – pois deixava que o dinheiro da merenda fosse desviado por homens de nariz comprido; logo ele que era responsável pela ausência de assistência médica, por que permitia que o dinheiro da saúde fosse desviado por descendentes do povo do deserto; logo ele que vivia nababescamente em uma província miserável... logo ele!!!! Um democrata? Um homem avançado? Como isso era possível?

Era o tempo em que os bichos falavam, e também era o tempo do Rei, e nada melhor do que ouvir a voz de um papagaio falante – provavelmente parente daquele que ficou conhecido como “papagaio de pirata” tempos depois. O passarinho curioso descobriu, em conversa velada entre o Rei e o provincial Marquês, a razão de tudo aquilo!


Contou a avezinha colorida, para uma “ama de leite” que contou para muitas outras, que uma visita se deu na alcova do monarca.

Vinha o fidalgo de província dar notícia de todas as movimentações que havia feito, na “casa dos eleitos” para defender as opiniões do Rei democrata. Descreveu contatos, declamou prestações de serviço, submeteu-se a birras e até hipotecou uma solidariedade tal que o próprio Rei ficou atabalhoado. Isso sem contar as próprias lágrimas vertidas. Era a subserviência em pessoa.


Mantinha todas as forças que adquirira durante anos de mandonismo provincial à disposição do déspota, inclusive deixando claro que tudo o que fazia era para o real deleite de sua alteza.


O reino era grande, a província miserável, e o fidalgo – que já fora déspota – tinha uma atuação global completamente diferente da sua cor local. O discurso externo era o inverso da prática interna.

Diz o papagaio que o Rei ouviu, e ouviu, e pensou..... parecia que ponderava mentalmente entre questões de princípios e a utilidade da estratégia. Comparava o tamanho e a força da reles província com a importância da revolução democrata em todo o Reino. Pensava e também se deixava levar pelo fisiologismo natural de todo Rei.


E como lhe era útil aquele aliado contraditório, nada mais cômodo do que aceitar a oferta e os atos genuínos de defesa e proteção. Por questão de tática e estratégia não havia razão para o Rei declinar de toda aquela ajuda oferecida na capital e com alcance em todo o universo governado.

Mas conta o papagaio, e recontam as “amas de leite”, pretas que cresceram contando estórias nas senzalas, que ao final desta visita, quando já ia saindo o Marquês fidalgo, depois da derrama de subserviência, o Rei lhe fez intrigado uma pergunta:


- Meu caro Fidalgo, me fazes tanto e não pedes nada em troca. Não queres de troco nada de nada?

- Amado Rei - disse o fidalgo - o que faço é apenas para lhe ajudar e por devoção a vossa alteza. Tinha até um pequeno problema provinciano, por demais local, mas existem questões maiores e mais importantes e não vos aborreço com isso.


- Mas do que se trata então Marquês?

- Questões menores, mas precisaria manter as coisas como estão na minha província para que todos nós continuemos devotos ao Rei.


- Então que seja assim....

Conta o papagaio, que ao ouvir isso, o fidalgo esboçou um contido sorriso de vitória, mas conservou-se impassível para ouvir a última frase, e que se repete ad aeternum na história daquela província:- Pois bem, meu caro fidalgo, o troco é seu!

OS JUÍZES E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL


O fato de alguém ser magistrado não o dota de qualidade específica ou lhe atribui condição superior aos demais cidadãos para interpretar a Constituição. Dar significado aos dispositivos constitucionais não é privilégio de quem segue a carreira de juiz, pois a atividade político-interpretativa pode ser exercida por qualquer pessoa integrante da comunidade. A boa interpretação sequer é privativa dos operadores forenses e dos acadêmicos, embora seja difícil localizar a pré-condição de “notável saber jurídico” em quem não seja bacharel em direito.

No mês de agosto o Ministro Eros Roberto Grau completou sua trajetória no Supremo Tribunal Federal, e a perspectiva deste ato fez aflorar a discussão acerca de quem poderia - ou deveria - ser indicado pelo Presidente da República para substituí-lo.

A AJUE, Associação dos Juízes Federais do Brasil elaborou consulta ampla entre seus representados e formou lista sêxtupla para ser apresentada ao Presidente da República. Ela também vem afirmando que é chegada a hora da nomeação de um Juiz para a Corte Suprema.

É razoável e legítimo este movimento político?

É preciso perceber que o Supremo Tribunal Federal não é exclusivamente Corte Constitucional, embora na maioria das vezes exerça esta função. Isto por que além de interpretar a Constituição, fazendo uso do controle concentrado e do controle difuso, o Tribunal ainda possui outras competências, recursais e originárias, que o configuram como um Tribunal Supremo, não necessariamente constitucional.

Julgar um Congressista que cometeu um crime pode ser considerada uma relevante função política, mas certamente ali não se trata de matéria constitucional, até por que os elementos objetivos e subjetivos do tipo penal, em se tratando de Deputados e Senadores, não diferem daqueles encontrados quando o réu é cidadão comum. E não é só em matéria penal que a Corte deixa de exercer função estritamente interpretativa da Constituição.

No julgamento de questões que digam respeito aos conflitos naturais de toda sociedade, o modelo de diferenciação funcional vigente impõe ao juiz esta função. Em outras palavras, cabe a quem exerce o cargo de magistrado dirimir conflitos. Se entendermos equivocada e sectária esta atribuição – quando se trata de STF – não teremos razão teórica para negar a utilidade de qualquer bacharel em direito ser nomeado para exercício em qualquer vara, de qualquer comarca e em qualquer Estado.

O senso comum pode até entender que o advogado, o delegado, o procurador ou o leigo interpretam as leis e decidem melhor que o juiz. É possível até que, conforme este ou aquele referencial isto seja verdade. Conquanto, abolir a diferenciação significa implodir o sistema, e já não haveria mais razão sequer para a carreira ou para o concurso público. A legitimidade formal é fundamental para a existência do modelo de jurisdição.

Se para interpretar a Constituição não é necessário ser magistrado, para efetivar o sistema normativo, com força e legitimidade, é fundamental que o agente seja um juiz. Considerando que o STF exerce atividade dúplice – Tribunal Constitucional e Tribunal comum – não é razoável que os juízes pleiteiem sua participação na Corte?

Por outro lado, se é normal no Brasil e no resto do mundo que os latinos, os nipo-descendentes, os imigrantes, os indígenas e os afro-descendentes busquem um lugar na Corte que decide as questões constitucionais, por que não seria legítimo que as mulheres e as demais orientações sexuais também fizessem o mesmo?

Nesta linha de argumento, por que não seria legítimo que procuradores, juízes, delegados e advogados exercessem o direito ao movimento político para se verem contemplados?

No Brasil, por que seria sectarismo pleitear que o próximo nomeado seja alguém que hoje exerce o cargo de juiz em qualquer instância ou Tribunal? Será que dentre todos os magistrados do Brasil, pessoas que têm por profissão a missão de julgar, não haveria um só que cumprisse o requisito do ‘notável saber jurídico’? Impensável! E o que faz alguém acreditar que um bacharel que nunca exerceu esta função sempre a exerceria – no STF - de forma mais plural e competente?

O Supremo Tribunal Federal deve ser o local de exercícios plurais e hiper-complexos. Local para conservadores e liberais – à esquerda e à direita. O acesso deve ocorrer por competência, não por origem, mas é legítimo e razoável que categorias e classes desejem que o indicado – dotado de conhecimento e reputação ilibada – seja um integrante das suas hostes.Isto é plural, é tolerante e é democrático, e não há razão para que este direito deixe de ser exercido em qualquer lugar do mundo, principalmente onde vigorar o Estado de Direito.