Era o tempo do Rei – como disse Manoel Antônio de Almeida e ainda diz Ruy Castro – e aquele país estava dividido em províncias. Havia as províncias do sul, as do norte, as do leste e as do oeste. O norte era pobre e eternamente explorado, mas de lá vinha a inteligência de alguns sábios, a força de muitos negros e a esperteza de uns tantos Malazartes do sertão. Vinham todos com as matas e com os cerrados. Eram acima de tudo fortes, como diria Euclídes, o velho. Era o tempo do Rei!
Mas o mundo daqueles idos – tempo em que os bichos falavam – não era apenas época de reinados e províncias, era também o tempo da revolução e da mudança. Alguns tinham objetivo de levar aquele Reino para a modernidade, para a igualdade e para o desenvolvimento. Mas as províncias do norte eram o oposto disso. Eram governadas e guiadas pelo atraso; lá reinava a pobreza, a corrupção o clientelismo e o subdesenvolvimento.
Mas as coisas da política – principalmente em um reino onde os bichos falavam – tinham sempre formas impensáveis, até irracionais. Justo daquele lugar, da mais pobre de todas as províncias, surgiu quem se apropriasse do movimento. Ali, onde diziam os locais “até boi voava, e de asa quebrada”, surgiu quem estivesse disposto a ser guiado pelas forças – e fazer-se de guia delas – rumo à democracia revolucionária que encabeçava o Rei.
Mais que estranho e incoerente, não? Diziam todos os bichos, e todos os homens.
Era um velho Marquês que aliava o discurso intelectual do norte, à esperteza que também campeavam por ali. E ele surgiu como um primeiro e o maior dos democratas. Logo ele, que usava e abusava da arte de ser imperial, foi um dos que mais emprestou sua lábia - e sua habilidade nas coisas “por debaixo dos panos” - aos democratas que nasciam.
E justo ele, que era um déspota e um larápio conhecido naquele canto provincial, pousou em todo reino como o homem da modernidade, do avanço e da intelectualidade. Logo ele que era useiro e vezeiro em permitir que crianças padecessem de fome – pois deixava que o dinheiro da merenda fosse desviado por homens de nariz comprido; logo ele que era responsável pela ausência de assistência médica, por que permitia que o dinheiro da saúde fosse desviado por descendentes do povo do deserto; logo ele que vivia nababescamente em uma província miserável... logo ele!!!! Um democrata? Um homem avançado? Como isso era possível?
Era o tempo em que os bichos falavam, e também era o tempo do Rei, e nada melhor do que ouvir a voz de um papagaio falante – provavelmente parente daquele que ficou conhecido como “papagaio de pirata” tempos depois. O passarinho curioso descobriu, em conversa velada entre o Rei e o provincial Marquês, a razão de tudo aquilo!
Contou a avezinha colorida, para uma “ama de leite” que contou para muitas outras, que uma visita se deu na alcova do monarca.
Vinha o fidalgo de província dar notícia de todas as movimentações que havia feito, na “casa dos eleitos” para defender as opiniões do Rei democrata. Descreveu contatos, declamou prestações de serviço, submeteu-se a birras e até hipotecou uma solidariedade tal que o próprio Rei ficou atabalhoado. Isso sem contar as próprias lágrimas vertidas. Era a subserviência em pessoa.
Mantinha todas as forças que adquirira durante anos de mandonismo provincial à disposição do déspota, inclusive deixando claro que tudo o que fazia era para o real deleite de sua alteza.
O reino era grande, a província miserável, e o fidalgo – que já fora déspota – tinha uma atuação global completamente diferente da sua cor local. O discurso externo era o inverso da prática interna.
Diz o papagaio que o Rei ouviu, e ouviu, e pensou..... parecia que ponderava mentalmente entre questões de princípios e a utilidade da estratégia. Comparava o tamanho e a força da reles província com a importância da revolução democrata em todo o Reino. Pensava e também se deixava levar pelo fisiologismo natural de todo Rei.
E como lhe era útil aquele aliado contraditório, nada mais cômodo do que aceitar a oferta e os atos genuínos de defesa e proteção. Por questão de tática e estratégia não havia razão para o Rei declinar de toda aquela ajuda oferecida na capital e com alcance em todo o universo governado.
Mas conta o papagaio, e recontam as “amas de leite”, pretas que cresceram contando estórias nas senzalas, que ao final desta visita, quando já ia saindo o Marquês fidalgo, depois da derrama de subserviência, o Rei lhe fez intrigado uma pergunta:
- Meu caro Fidalgo, me fazes tanto e não pedes nada em troca. Não queres de troco nada de nada?
- Amado Rei - disse o fidalgo - o que faço é apenas para lhe ajudar e por devoção a vossa alteza. Tinha até um pequeno problema provinciano, por demais local, mas existem questões maiores e mais importantes e não vos aborreço com isso.
- Mas do que se trata então Marquês?
- Questões menores, mas precisaria manter as coisas como estão na minha província para que todos nós continuemos devotos ao Rei.
- Então que seja assim....
Conta o papagaio, que ao ouvir isso, o fidalgo esboçou um contido sorriso de vitória, mas conservou-se impassível para ouvir a última frase, e que se repete ad aeternum na história daquela província:- Pois bem, meu caro fidalgo, o troco é seu!