"Não gosto de ver correr cavalos nem touros. Eu gosto de ver correr o tempo e as coisas. Só isso." Machado de Assis

terça-feira, 28 de setembro de 2010

QUANDO OS LOBOS SÃO MUITOS

Era uma vez uma sociedade de 12 (doze) indivíduos, onde dois deles eram homossexuais. Um belo dia de sol, reunidos em assembléia, depois do discurso inflamado de um deles e da defesa de ambos os acusados, os dez heterossexuais resolveram que os dois diferentes teriam de morrer.

Esta decisão foi absolutamente democrática, na medida em que dela participaram todos os cidadãos de nosso país fictício, houve procedimento que levou a decisão, e a ordem de execução partiu de uma ampla maioria.

Como o nosso exemplo bem demonstra, a democracia absoluta pode conduzir a uma atrocidade, e a negação da própria racionalidade. Quando leio e quando ouço expressões como “tudo pela democracia” penso sempre em todo o mal que o mundo já experimentou em razão de decisões, julgamentos e compreensões vindos da maioria.

Isto não quer dizer que a nossa sociedade duodecimal seria mais justa e mais feliz se apenas dois – diferentes ou iguais – resolvessem, com base em alguma lei, escravizar os outros dez, optando sozinhos por suas idéias de justiça e correção. Se algumas regras imemoriais justificassem o direito dos dois líderes hipotéticos de se sobreporem aos dez, até poderíamos ter leis sendo executadas, mas estaríamos ferindo da mesma maneira a racionalidade.

Como fica claro facilmente na simplória leitura do nosso segundo exemplo, o direito também pode comportar um mal.

Estamos sempre entre duas antíteses que exercem uma tensão entre si, em movimentos opostos: de um lado o direito, do outro, a democracia. Embora o direito tenha origem na idéia de maioria – posto que as leis são feitas por um Poder democrático – a sua aplicação sempre se dá pelo único dos Poderes estatais que não é, e nem pode ser democrático: o Judiciário.

Há sempre dois fantasmas que se escondem e estão à espreita do mínimo deslize em cada um dos pólos. Há o fantasma do direito, e também há o fantasma da democracia. O autoritarismo, que sempre se apóia no direito, e o totalitarismo, que sempre se justifica na vontade da maioria. Ambos são opressores, ambos sufocam as diferenças, ambos agridem a racionalidade.

Este é o paradoxo de toda compreensão política, ou o “paradoxo da democracia” como quer a cientista política e filósofa belga, de origem indiana, Chantal Mouffe. O nosso grande desafio é equilibrar este pêndulo e permitir que o direito reduza a tendência totalitária da democracia, e que a democracia reduza a tendência autoritária do direito.

Por esta razão, é preocupante ver os exercícios de demonstração da ‘vontade do povo’, em julgamentos populares que se realizam através da imprensa, ou da internet, e utilizando-se do senso comum. Também pode ser assustador ver a tentativa de encontrar o ‘espírito do povo’ em manifestações que se autodenominam ‘tribunais populares’, ou ‘tribunais da terra’ ou algo que o valha. Enquetes populares também se manifestam com a mesma virulência desarrazoada.

Estes julgamentos construídos para dar vazão aos anseios imediatistas ou perenes da maioria não diferem muito da decisão de soltar Barrabás e condenar Jesus à crucificação, o que parece ter sido injustificável até mesmo para um agnóstico.

Ainda que movida pelas razões certas, as decisões da maioria podem sufocar a racionalidade, e deixar de lado as maiores conquistas da modernidade. 
Acaso Hitler era um homem apenas, ou trazia consigo todo um país que se deixava caminhar naquela direção? Está claro que suas decisões foram toleradas e aprovadas pela maioria do povo alemão, e isto se constitui em um trauma da modernidade.

Da mesma maneira, Mussolini e Hugo Chaves também se apóiam na regra da maioria. Não foi diferente com Juan e Evita Perón e com tantos outros delinqüentes estatais.

Isto não quer dizer que devamos permitir a ditadura de poucos autoritários, quer apenas deixar claro que não é possível submeter aos desejos plenos e da maioria direitos que são caros à idéia de pluralidade, de diferença e de tolerância.

Até posso concordar com o pensamento segundo o qual “para o direito nem sempre basta cercar as ovelhas. Às vezes é preciso gradear a toca dos lobos”. O problema é que a modernidade e a racionalidade ainda não conseguiram dizer, com certeza, quem são os lobos e quem são as ovelhas. E, pior, muitas vezes as ovelhas, todas elas reunidas, tendem a se transformarem em lobos sanguinários, ou a utilizar o rótulo de ‘lobo’ para gradearem os pastos de outras ovelhas.