O maior cientista político italiano da segunda metade do século XX suscitou a discussão acadêmica em torno da sobrevivência da dicotomia ‘direita e esquerda’. A questão teórica e prática - que tomou conta das ditas novas esquerdas depois da queda do muro de Berlin - longe de estar superada, revela-se muito importante para a compreensão do mundo latino-americano nesta primeira década, do novo século.
Norberto Bobbio certamente não esquadrinhou todos os pontos da questão, mas o seu ‘pequeno grande livro’ continua chamando à leitura os livres pensadores. ‘Destra e Sinistra’ – título original em italiano - tenta responder a uma pergunta da intelectualidade do século passado, mas aviva problemas da nossa própria realidade.
Quem é de esquerda? Que governos são de esquerda, ou marxistas? Os aliados construídos nas contingências eleitorais são agora, milagrosamente, eles também, de esquerda, e simpatizantes de Marx? Alguém ainda o é nos moldes de Josef Stalin ou Erich Honecker? E Karl Marx, ainda está vivo para fortalecer os nossos sonhos e os nossos desejos de igualdade?
Certa vez, na Itália, li pichada em um muro da universidade de Lecce, onde eu estudava, frase repleta deste sentimento pós-moderno de perda de referencial: “Marx está morto, Nietzsche também, e eu não me sinto muito bem”! Anos depois encontrei esta mesma frase em um livro de Zigmunt Baumann.
Na confusão da ausência de identidade teórica, ainda há a diferença entre direita e esquerda? E se há alguma diferença, ela ainda é importante?
O marxismo atraiu diversas mentes brilhantes em todo o mundo no século XX, e por diversas razões. Para diversos pensadores, como Maurice Merleau-Ponty, era simplesmente por que não se tratava de “uma” filosofia da história, mas “a própria” explicação do processo histórico.
Mas a verdadeira razão de tantas mentes brilhantes terem se dedicado ao marxismo e às esquerdas, conforme o polonês Leszek Kolakowski, reside no fato da teoria de Marx ser uma filosofia ampla, explicativa da seta da história e que prometia um futuro igualitário, onde homens e mulheres não conheceriam a diferença que causa inferioridade. Uma conjugação de racionalismo histórico com idealismo otimista.
Marx não poderia imaginar que não seriam os trabalhadores das grandes cidades a tentar construir a igualdade, mas sim uma casta intelectualmente privilegiada, depois militarizada, em um país atrasado, semi-feudal e corrupto: a Rússia. Nem poderia supor que tal controle burocrático e redutor das liberdades fosse se estender de forma totalitária a todo leste europeu.
Como nos diz Tony Judt, os melhores alunos do marxismo terminaram sendo uma “camarilha de tiranos”.
Também ele, Marx, não poderia prever que sistemas políticos vazios de conteúdo, no todo igualáveis às suas próprias antíteses, se utilizariam da mensagem do marxismo para praticá-lo de forma equivocada, caudilhesca e populista em um autêntico baile de palavras, onde tudo aquilo que fora combatido na origem, não mais que de repente se tornaria aceitável, palatável, e aliável.
Eric Hobsbawm, O lord da esquerda inglesa, ou o ‘Mandarim Comunista’ foi o historiador responsável por toda a formação de pensadores de minha geração que abraçaram a compreensão marxista da história, por verem nela não apenas uma grande narrativa das nossas vidas passadas, presentes e futuras, mas principalmente por vislumbrarem uma esperança na construção de um universo de iguais.
Hobsbawm aceitou academicamente, e passivamente, os desvios da história do comunismo marxista-estatal, principalmente no leste europeu. Talvez o velho Mandarim não perceba hoje uma negação estrutural do marxismo consistente na aliança em outras partes do mundo, dos ditos marxistas com banqueiros corruptos, empresários mal intencionados e políticos fisiológicos.
Talvez sequer veja mal no fim das liberdades de imprensa, na redução do direito à diferença, nas relações amistosas com criminosos e na manutenção de “tudo como era dantes, no quartel de Abrantes”, como diriam os portugueses que não fizeram a Revolução dos Cravos.
Não é possível pensar como Bobbio, o velho professor italiano, acerca da diferença entre direita e esquerda! Não é possível vê-la no horizonte.
No mundo pós-moderno, no Brasil do século XXI, e no Maranhão dos anos 2010 a prática venceu a teoria, e fundiram-se as antíteses teóricas. A prática - como projeto de poder - engoliu a teoria, como desejo de realidade.
Cabe aos velhos marxistas, oposicionistas de todos os regimes, e quase ídolos de meu tempo, fornecerem as respostas à pergunta do poeta Vinícius de Morais, quando em música interrogou o seu Criador:
“Pergunto a Deus, escute amigo: se foi para desfazer por que é que fez?”
Marx está morto.... Nietzsche também...
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