Nada é por acaso! Então não foi por acaso que semana passada me caiu às mãos – ou melhor, às vistas – um belíssimo filme alemão intitulado “A Vida dos Outros”. Da mesma maneira não deve ter sido por casualidade que li ontem e hoje “O Pianista no Bordel”, do jornalista espanhol Juan Luís Cebrián.
Nos dois casos a temática visitada era a informação. Informação buscada, roubada e utilizada. O tema também era a vigilância e a vigília sobre alguém ou algo objeto do nosso desejo de obter informação.
Ambos, livro e filme, tratam das contendas entre todos e o poder, seja ele o poder do Estado, o poder político ou o poder dos criminosos. Poderia ser igualmente o poder da mídia. Livro e filme visitam as escutas telefônicas, os grampos ilegais, as liberdades e as funções públicas. Falam da polícia, dos governantes, dos juízes e dos criminosos; falam do Estado e do seu controle; falam também das liberdades, principalmente da imprensa.
Como posso comprovar, nada é por acaso.
Os métodos contemporâneos de investigação utilizam-se exatamente daquilo que dá o tom e representa o dom da vida contemporânea, e que se tornou a sua principal característica: o fluxo de informações.
Para investigar e descobrir o que se deseja é fundamental exercer uma clipagem sobre os canais de irrigação da informação, já que todos nós nos movimentamos por eles. Esta clipagem atenderá pelo nome de quebra de sigilo fiscal, bancário, telefônico, telemático e documental. Desviam-se os dados que informam os atos e conhece-se aquilo que há para ser conhecido. Ao contrário do que dizia Chacrinha, quem se comunica também se trumbica!
Como lembra o sociólogo alemão Niklas Luhmann, o nosso modo de viver moderno caracteriza-se pela comunicação, e a sociedade nada mais é do que um enorme sistema com esta natureza. Enxergá-lo, da melhor maneira possível, é o objetivo de quem atua. Mas quem atua?
Este é o ponto!
A modernidade rompeu com a aristocracia, e o mundo já havia rompido antes como feudalismo. Criou-se um Estado jungido por leis e por algo inusitado para o sistema oligárquico, feudal ou absolutista... a democracia. Nela, o povo elege quem governa e quem governa trabalha em prol do povo, executando leis e administrando não em proveito próprio, mas em atenção ao interesse público.
É a este Estado que cabe executar as leis. Para sairmos dos termos do século XVIII e voltarmos ao linguajar do século XXI, poderíamos dizer que é a este Estado que cabe executar a clipagem dos canais de comunicação, e sempre por uma razão pública: descobrir atos criminosos. O contrário, a utilização de escutas telefônicas por parte dos criminosos não tem nada a ver com a modernidade, é apenas um crime, como outro qualquer.
E este crime comum é mais ainda torpe quando estas investigações paralelas – que seriam legítimas se não se utilizassem de métodos ilegais – tem o objetivo de alcançar informações que o bandido reputa existentes para constranger, chantagear, intimidar e ameaçar o servidor do Estado.
Mas a torpeza às vezes não para, ao menos em tese, por aí. Ao descobrir que não há como atingir o servidor público, nada mais natural para o criminoso que tentar amealhar indícios de alguma querela pessoal com potencial para levar à ruína o agente do Estado. Vale a máxima que eu encontro em Diderot: não podendo atingir o Estado, busca atingir o homem. C´est la vie, et la melodie, diria o francês.
Mas como ‘cesteiro que faz um cesto faz um cento’, ao descobrir que nada há também nesta seara, é possível ao criminoso organizado – conforme conceitua a Convenção de Palermo, cidade natal deste tipo de organização – divulgar a plenos pulmões a existência da escuta criminosa, e espalhar boatos acerca da existência de atos iníquos praticados pelo servidor do Estado. Tudo vale para suscitar constrangimento, dúvida e chateação.
É natural que assim pense o bandido pela só razão de que é dado a todo criminoso tirar a medida dos outros pela fita métrica que lhe mede. Porém, nada mais satisfatório aos homens de bem do que provar, a todo instante, a volumosa diferença entre a grandeza e a pequenez.
Em tempos de overdose comunicativa e tecnológica é muito fácil escutar pessoas criminosamente. Quando a raposa toma conta do galinheiro, o gato vigia o pires de leite e o cachorro carrega a bandeja de lingüiça, todas as lambanças são esperadas. E todas são de responsabilidade do dono dos porcos.
Não foi sem razão que humanidade superou a teocracia, o feudalismo, a aristocracia e o despotismo esclarecido. Superou-as para dar vazão à uma velha poesia: uma rosa, é apenas uma rosa. Também tem o mesmo sentido: um bandido é apenas um bandido.