"Não gosto de ver correr cavalos nem touros. Eu gosto de ver correr o tempo e as coisas. Só isso." Machado de Assis

sexta-feira, 28 de maio de 2010

GRAMPOS E PORCOS

Nada é por acaso! Então não foi por acaso que semana passada me caiu às mãos – ou melhor, às vistas – um belíssimo filme alemão intitulado “A Vida dos Outros”. Da mesma maneira não deve ter sido por casualidade que li ontem e hoje “O Pianista no Bordel”, do jornalista espanhol Juan Luís Cebrián.
Nos dois casos a temática visitada era a informação. Informação buscada, roubada e utilizada. O tema também era a vigilância e a vigília sobre alguém ou algo objeto do nosso desejo de obter informação.
Ambos, livro e filme, tratam das contendas entre todos e o poder, seja ele o poder do Estado, o poder político ou o poder dos criminosos. Poderia ser igualmente o poder da mídia. Livro e filme visitam as escutas telefônicas, os grampos ilegais, as liberdades e as funções públicas. Falam da polícia, dos governantes, dos juízes e dos criminosos; falam do Estado e do seu controle; falam também das liberdades, principalmente da imprensa.
Como posso comprovar, nada é por acaso.
Os métodos contemporâneos de investigação utilizam-se exatamente daquilo que dá o tom e representa o dom da vida contemporânea, e que se tornou a sua principal característica: o fluxo de informações.
Para investigar e descobrir o que se deseja é fundamental exercer uma clipagem sobre os canais de irrigação da informação, já que todos nós nos movimentamos por eles. Esta clipagem atenderá pelo nome de quebra de sigilo fiscal, bancário, telefônico, telemático e documental. Desviam-se os dados que informam os atos e conhece-se aquilo que há para ser conhecido. Ao contrário do que dizia Chacrinha, quem se comunica também se trumbica!
Como lembra o sociólogo alemão Niklas Luhmann, o nosso modo de viver moderno caracteriza-se pela comunicação, e a sociedade nada mais é do que um enorme sistema com esta natureza. Enxergá-lo, da melhor maneira possível, é o objetivo de quem atua. Mas quem atua?
Este é o ponto!
A modernidade rompeu com a aristocracia, e o mundo já havia rompido antes como feudalismo. Criou-se um Estado jungido por leis e por algo inusitado para o sistema oligárquico, feudal ou absolutista... a democracia. Nela, o povo elege quem governa e quem governa trabalha em prol do povo, executando leis e administrando não em proveito próprio, mas em atenção ao interesse público.
É a este Estado que cabe executar as leis. Para sairmos dos termos do século XVIII e voltarmos ao linguajar do século XXI, poderíamos dizer que é a este Estado que cabe executar a clipagem dos canais de comunicação, e sempre por uma razão pública: descobrir atos criminosos. O contrário, a utilização de escutas telefônicas por parte dos criminosos não tem nada a ver com a modernidade, é apenas um crime, como outro qualquer.
E este crime comum é mais ainda torpe quando estas investigações paralelas – que seriam legítimas se não se utilizassem de métodos ilegais – tem o objetivo de alcançar informações que o bandido reputa existentes para constranger, chantagear, intimidar e ameaçar o servidor do Estado.
Mas a torpeza às vezes não para, ao menos em tese, por aí. Ao descobrir que não há como atingir o servidor público, nada mais natural para o criminoso que tentar amealhar indícios de alguma querela pessoal com potencial para levar à ruína o agente do Estado. Vale a máxima que eu encontro em Diderot: não podendo atingir o Estado, busca atingir o homem. C´est la vie, et la melodie, diria o francês.
Mas como ‘cesteiro que faz um cesto faz um cento’, ao descobrir que nada há também nesta seara, é possível ao criminoso organizado – conforme conceitua a Convenção de Palermo, cidade natal deste tipo de organização – divulgar a plenos pulmões a existência da escuta criminosa, e espalhar boatos acerca da existência de atos iníquos praticados pelo servidor do Estado. Tudo vale para suscitar constrangimento, dúvida e chateação.
É natural que assim pense o bandido pela só razão de que é dado a todo criminoso tirar a medida dos outros pela fita métrica que lhe mede. Porém, nada mais satisfatório aos homens de bem do que provar, a todo instante, a volumosa diferença entre a grandeza e a pequenez.
Em tempos de overdose comunicativa e tecnológica é muito fácil escutar pessoas criminosamente. Quando a raposa toma conta do galinheiro, o gato vigia o pires de leite e o cachorro carrega a bandeja de lingüiça, todas as lambanças são esperadas. E todas são de responsabilidade do dono dos porcos.
Não foi sem razão que humanidade superou a teocracia, o feudalismo, a aristocracia e o despotismo esclarecido. Superou-as para dar vazão à uma velha poesia: uma rosa, é apenas uma rosa. Também tem o mesmo sentido: um bandido é apenas um bandido.

O DIREITO AMBIENTAL DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

O clima vem sendo objeto privilegiado de pesquisa dos cientistas das mais diversas áreas. As ciências vêm se preocupando há bastante tempo com as modificações no ambiente, principalmente após a constatação de que as temperaturas estão se modificando em todo o globo, e os eventos climatológicos causando distúrbios em proporções alarmantes.

As mudanças climáticas são uma realidade, e nada autoriza a constatação de que a terra caminha para o equilíbrio. Muito ao revés, os dados científicos demonstram que o desequilíbrio só aumenta.

Aquecimento global deixou de ser apenas um clichê a mais, e passou a ser um vocabulário usual para referir-se ao aumento da temperatura na terra. Não é possível mais falar em estabilidade do clima, pois o mundo vem suportando o aquecimento, o resfriamento, as secas e os dilúvios, onde antes havia equilíbrio climático e as estações se sucediam sem maiores alarmes. Nada está a indicar que, para a ciência, as preocupações com o ambiente venham a ser superadas por outra, em curto espaço de tempo.

É nesta nova seara do conhecimento, alçada ao patamar de campo de atuação dos mais variados cientistas, onde mais a ciência produz. E esta onda de geração de conhecimento atinge também as tecnologias, que não produzem conhecimento científico, dentre elas o direito.

As preocupações científicas com o clima não estão mais restritas ao primeiro mundo e nem dela se ocupam apenas os ecologistas, os biólogos e os climatologistas. Para as discussões estabelecidas em derredor do objeto ‘ambiente’ convergem as preocupações científicas, os sistemas tecnológicos e as opiniões do senso comum. Desta forma, o tema acaba por dominar grande parte do conjunto de pensamentos de cientistas, filósofos, sociólogos, juristas, turistas e viajantes: nada mais popular.


As mudanças climáticas propiciam o surgimento de novas tecnologias para serem usadas como instrumentos de enfrentamento da modificação das condições de vida no planeta. Dentre as tecnologias dos sistemas humanistas é possível destacar o surgimento do ‘direito das mudanças climáticas’. Visto sob a lente da dogmática jurídica, este modo de pensar as relações jurídicas ambientais constitui-se em uma ferramenta para a resolução de agressões humanas à sanidade do ambiente.


Esta abordagem das questões ambientais pelo discurso jurídico gerou um novo ramo do direito que se ocupa das mudanças climáticas, e se difere, por enfoque, por ângulo de enfrentamento e por objetivo, do moderno direito ao ambiente. Trata-se do direito ambiental das mudanças climáticas.

O discurso ambiental é politicamente correto em todos os lugares do globo. O direito ambiental das mudanças climáticas é o direito ambiental do tempo presente, do futuro que já chegou, e os correspondentes movimentos ecológicos pelo equilíbrio do clima são movimentos de vanguarda, na medida em que se dedicam a um assunto importante e relativamente recente.

No mundo pós-moderno as mudanças no clima operam de uma forma tal que a sensação reinante é exatamente a contrária a desejada segurança. A percepção da incerteza, devido a terremotos, tufões, tsunamis, maremotos, frio excessivo, secas e geadas, tornou a vida insegura. A incerteza está presente no nosso dia-a-dia, e a conseqüência desta insegurança é uma sensação de angustia, principalmente por não ser mais possível resgatar o estado de certeza que era um dos ícones da modernidade. Neste universo de incertezas que caracterizam a sociedade do risco na qual vivemos, uma das preocupações reinantes é com a nossa própria sobrevivência à médio prazo, e com a qualidade de vida que possuímos.

Em grande parte estas preocupações também adquirem volume devido à fácil visualização das agressões de Estados e empresas contra o ambiente, além de algum consenso científico no sentido de que estas modificações, fruto das atividades humanas, são as responsáveis pela alteração no clima da terra.

Exatamente pelo fato de haver entendimento científico no sentido de que as modificações no clima são fruto dos atos humanos, parece razoável pensar na atuação do direito como instrumento de defesa do planeta e de seus habitantes, principalmente por que estes atos, quase sempre, estão vinculados a uma atitude lucrativa ou vinculados à compreensões desenvolvimentistas.

Note-se que há sempre uma compreensão autopunitiva que nos impõe a sensação do erro e o sentimento de culpa por nosso modo de viver e por nossa maneira de ser. A nossa formação ocidental nos obriga à sensação de culpa cristã e à convivência com a idéia de erro que poderia ter sido evitado. Evidentemente que esta idéia de culpa não impõe uma carga idêntica para todas as pessoas. Mesmo assim, a maior fonte contemporânea de preocupações com o agir de forma politicamente correta tem sido a questão ambiental. A atitude de preservar o ambiente tem se tornado a razão de ser de muitas vidas, e a opção de luta de toda uma geração que se forma.


O direito ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado é hoje uma realidade e deixou de ser o detalhe quase esquecido do direito constitucional ou a nota de rodapé do direito administrativo. O direito das mudanças climáticas herda todo este patrimônio e começa a constituir-se não como um desdobramento natural de uma disciplina-mãe, mas como uma nova perspectiva do direito ao ambiente.

A visão privatista que tratava do ambiente apenas como um objeto do patrimônio individual sobre o qual era lícito gozar, usar, usufruir e dele se desfazer foi superada pela aceitação – agora majoritária – da idéia de que o regime do ambiente não pode ser o mesmo dos objetos ou coisas em geral. As regras e os princípios de direito ambiental vêm deixando de ser vistas como aquelas que emperram e atrapalham o progresso e passaram a ocupar o patamar de itens necessários ao desenvolvimento humano. É neste particular quadro que nasce o ‘direito ambiental das mudanças climáticas.’

Neste diapasão é fundamental para o jurista o estabelecimento de um discurso jurídico acoplado às novas compreensões do ambiente. É necessário um direito novo, mesmo que isso signifique abalar toda a estrutura de saber que tende à conservação e não à dinâmica. O discurso jurídico ambiental precisa ser um discurso de ruptura de paradigmas para que possa se afirmar como útil à sociedade.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

DESPEDIDA

Para Sergei Medeiros Araújo



Amigo. Imperfeitamente amigo.
Por ser indelevelmente humano.
Individual. Para ser irretorquivelmente único.
Pontual e finito. Como algo a ser levado consigo.

Amanheceu! Como amanhecerá todo fim de noite.
Alguém disse adeus! Como já disseram em muitas despedidas.
Não há novidades nos discursos, nas lágrimas e nas cartas.
Nada de novo, na cena de alguém que vai.
Ninguém encena um aceno diferente.
Nem mesmo o aperto de mão é outro.
É o mesmo de outro já esquecido.

O retorno é breve! Vai mas volta! Há uma parte que fica!
[Deixará marcas para sempre!
Todas as frases monótonas de uma mesma nova despedida.
Tolas hipocrisias vernaculares discrepantes
Da sincera perda medrosa de uma ausência sentida.

Eu comecei a me despedir quando nasci
Da parteira, do berço, do hospital, de minha mãe.
Separação da escola, da lancheira, das carteiras.
Das brincadeiras, das ruas e das ladeiras.


Deixei jogos, cervejas, festas e namoradas.
Os discos, os livros, o mundo e os desejos.
De tudo abandonei um pouco.
Deste pouco abandonaram-me muito.

A vida é despedida, e quando me despeço morro um pouco.
Já morri nas ruas, nas camas, nos romances.
Eu morri na Europa. Eu morri nas praias.
Morri em frases e em sorrisos.
Morro todos os dias quando acordo.
Morro todas as noites quando durmo.

Não quero mais me despedir.
Nunca mais quero o abandono.
Não quero deixar de ser.
Nunca mais morrer, não quero.

Na festa em que ruidosos homens se abraçam,
Onde mulheres choram e olham o futuro.
Eu me sinto ausente e morto.
Não me despeço. Para que não se disperse quem sou.

Engano-me, pois sei que é preciso.
Partir é necessário, é imperativo.
É obrigatório que parta e que conquiste.
E que fique o tempo mais lento, devagar.
Ele é sempre mais lento para quem fica.
É sempre mais veloz para quem vai.

Mas não sou hipócrita.
Não digo vá!
Não minto falando ao microfone: vá!
Sou humano, pegajoso e egoísta.
Cá, frente aos meus olhos. Já, ao lado dos nossos.
É a parcela de palavra que me cabe.
È o pouco que me resta como irmão.

E o medo da despedida é a sombra.
O pânico da partida é o negro vulto.
O desespero da ida é a escuridão.
A dor da viagem é a ausência de luz.

E que claridade é essa que eu temo a falta?
Qual a luz essencial que eu temo o apagar?
O terror atenderá pelo nome de esquecimento.
A luminosidade se reconhece na confiança eterna.

E de quanto eu posso falar!
Do muito que éramos e do pouco que somos!
Mas posso dizer que a estranheza e o esquecimento
São dragões odiosos que engolem a luz.

Mas há uma festa, uma enorme festa.
E na festa não cabe medo, não há lugar para receio.
Mas há medo, e o medo festeja por mim.
É o temor da perda do que é essência.
É a um só tempo reconhecimento de tudo.
Da amizade, da proximidade, da cumplicidade.

Irrompe a despedida – dizem – é o destino.
Mas ele existe, ou o fazemos? Inevitável?
Penso na distância... uma sensação.
Proponho a sua inexistência.

Relativizo a advertência do espaço,
Sinto-me perto, sem sê-lo de fato
Perto quando precisamos.
Irmãos quando desejamos.

Mas há uma festa, e dizem, é de despedida.
E o que há para festejar, então?
Acaso a partida merece aplausos?
Ou o aplauso é mera formalidade com faustos?

Ei-lo, ei-me. Repletos e nunca completos.
Diferentes e iguais. Comuns e especiais.
Partimos e morremos. Vamos e ficamos.
Aceito. Orgulho-me. Mas não conte comigo para despedidas.

Tente ir, sem partir.
Veja se vai, sem deixar.
E guarde consigo onde quer que esteja.
A mais perene de todas as certezas.
Amigo!

* Autor: Ney Bello Filho, Livro Cartografias Heréticas.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

O BAR DO MOSCA

“O Mosca” não era um bar: Era uma instituição. Para falar a verdade ele nem mesmo se chamava “Bar do Mosca”. Chamava-se Bar Sol, em homenagem a rua que lhe dava abrigo. Mosca era o apelido que nós botamos no garçom. Magrinho, algo entre albino e louro, muito próximo do popular fogoió, estava sempre trazendo cerveja e levando garrafas vazias. Possuía olheiras profundas, quase não falava e circulava nas mesas como uma mosca de padaria. E ainda tinha aquela coisa das duas mãos! Eram curvadas para frente, como que penduradas no antebraço e pendentes na direção do chão. Ele realmente parecia uma mosca. Por isso era o “Bar do Mosca”, e não da mosca.

Karl Marx era nosso companheiro eterno, e o regime militar era o “cachorro da festa”, que todos nós chutávamos com afinco. Chico Buarque, Vinícius de Morais, Garcia Marquez e Josué Montello eram visitantes sempre ilustres, e não raro surgiam outros passantes menos habituais, como Nauro Machado, Paulinho Pedra Azul, Flávio Venturini, 14 Bis e Mercedes Soza. Nada de música yankee. Nada de literatura imperialista. Quando muito um pouco de Beatles, e com alguma desconfiança. Ou um tantinho de Hemingway e Faulkner, mas com vigilância redobrada. E um brinde a Pablo Milanes!

Todos nós bebíamos ‘Cerma’, a cerveja mais barata dos bares citadinos, pois arrancar uma grana para beber Antártica era um pouco mais difícil. Quando pintava um vinho era o bom e velho “Tamandaré”, quando não era sucedido pelo Fiel “Sangue de Boi”. Whisky era quase impossível, a não ser como rescaldo da farra de algum dos nossos pais. E mesmo assim furtado, pois nenhum deles admitiria os filhos de quinze, dezesseis ou dezessete saírem de casa com uma garrafa de escocês.

Lênin também era habituée das rodas, e só superava o herói da Ilha, literalmente, já que vínhamos todos de ler Fernando Morais. E um brinde ao companheiro Fidel!
E a Guerra do Paraguai então? Genocídio Americano todos nós lemos e quase decoramos. E tinha quem puxasse um brinde a Solano Lopez.

Decididamente não era um boteco, era um complemento da escola. Papo de bêbado, papo de apaixonado, papo de esquerdista, e até mesmo papo de crise existencial rolava no “Mosca”. Só não pintava papo de mauricinho, conversa de playboy, e gosto de “filhinho de papai”. Mosca não era lugar para “boi-de-botas”, como dizíamos. Afinal, “nós somos nós, e boi não Lambe. E se lamber, nós corta a língua, pois chapéu de otário é marreta”. Entre “Cermas” quentes e queijo coalho gelado dizíamos isso de todos, e de nós mesmos. Não era um boteco. Era instituição. Era cultura, literatura, política e sociedade. Discurso jurídico veio algum tempo depois, mas aí já estávamos em busca do “Ponto de Fuga”.

A Geração “Bar do Mosca” possui hoje entre 40 (quarenta) e 44 (quarenta e quatro) anos. E ainda tem horror a playboy e mauricinho. Ainda discute política, cultura, literatura e sociedade. Todos pensam o Brasil, o Maranhão, São Luís e o mundo.

Talvez agora continuemos discutir aqui: No “Geração Bar do Mosca”.

AS PALAVRAS E OS HOMENS

A palavra precede o homem. Esta é a mais importante lição dos Ukuluns, um povo que ocupou em tempos imemoriais as estepes de um continente que já não existe mais.

As informações que chegaram até nós vêm apenas de inscrições cuneiformes que são interpretadas e traduzidas por arqueólogos de uma única universidade, localizada no sul da França. Trata-se de uma civilização esquecida que se construiu pela palavra.

Ao invés de criar a sua própria linguagem, a civilização dos Ukuluns foi criada por ela. Eles são fruto das palavras pronunciadas e escritas, são conseqüências das letras arregimentadas para formarem sons. Até então, as palavras eram desprovidas de qualquer sentido.

Antes do acontecimento aqui narrado, elas eram apenas letras agarradas umas as outras em razão da necessidade de sobrevivência, pois o viver e o morrer eram fatos condicionados às possibilidades físicas dos seres pronunciarem-nas. Acaso uma letra se juntasse a outra sem que a união permitisse qualquer som emanado pelos trogloditas existentes nas estepes, a palavra nascente seria esquecida, e então estaria condenada a morte. O esquecimento da palavra era a sua sentença de morte, e o instinto de sobrevivência é que fazia com que as letras se agregassem de uma maneira ou de outra.

Conforme sabemos, em uma manhã invernal as palavras fugiram das escrituras e das bocas, e ganharam o mundo. Em fuga, diversas delas despedaçaram-se em letras, ditongos, tritongos, hiatos e sílabas - agudas e tônicas. Foi uma festa pagã, por assim dizer, de palavras - inteiras e mutiladas - que, em fuga para ganharem o mundo, divorciaram-se da tirania dos sons e das leituras ininteligíveis, e percorreram todos os limites do mundo conhecido. Não percorreram os quatro cantos por que, segundo se sabe, as estepes eram circulares, o que permitiu as palavras apenas circularem pelo mundo conhecido.

Sabe-se que as vogais foram se aproximando das coisas mais simples, mais terrenas, mais amenas. Chegaram mesmo a se afeiçoarem às coisas vivas, dando leveza e desenvoltura às matérias as quais se aproximaram. Já as consoantes, mais duras, mais inflexíveis, tenderam a chegar perto das coisas complexas, do metafísico, do etéreo, do intangível.

Não havia, até então, homens para delas se apropriarem, e as palavras corriam soltas, aproximando-se de um lugar qualquer para logo em seguida alçarem vôo em direção a outros objetos, outros seres e outros elementos. É provável que a idéia segundo a qual é através das palavras que se pode pensar e, portanto, voar, não fosse uma metáfora, mas sim uma recordação do tempo em que as letras e palavras voavam as estepes em busca de objetos.

Após séculos circulando, aproximando-se e depois fugindo de materiais, lugares, seres e coisas, um evento inusitado ocorreu. Uma palavra apaixonou-se tão fantasticamente por um ser inanimado que dele não mais quis se distanciar, e passou a viver uma relação de perfeita fusão, ou simbiose e, não mais que de repente, a palavra passou a significar o objeto, e o objeto tendia a ser conhecido pela própria palavra. Era o começo da era dos Ukuluns conhecida como ‘Era da significação’.

As palavras começaram a correr atrás de tudo o que existia para se apaixonarem e viverem a sua história de amor eterno. Tudo que até então existia passou a estar agregado a alguma palavra, em um romance que se dizia eterno e que se chamaria, segundo o vernáculo do futuro, denotação. A denotação ou significado denotativo era o nome do romance que se queria eterno, entre as palavras e as coisas.

Hoje quando acordei as palavras haviam fugido de meu dicionário, e as páginas do meu velho livro amanheceram em branco. Estamos no século XXI e é um tanto mais difícil acreditar que as palavras saíram para passear e branquearam as minhas páginas. Talvez algum efeito cientificamente explicável, ligado à tinta ou ao papel, seja mais factível.

A história que eu desejo contar não termina aí. Não chega ao fim com a fuga das letras inanimadas, em busca de objetos de furtiva paixão. Assim como no mundo dos homens, no mundo das palavras os amores não são eternos, e algo que hoje se conhece por certa palavra, no futuro poderá ser conhecida por outra palavra.

Se nos tempos dos Ukuluns assim foi, nos tempos dos pós-modernos em que vivo este movimento parece ser diferente. Hoje vivo o tempo das palavras fugitivas. O tempo das palavras que deixaram meu léxico para correrem atrás de outras formas. A fuga das palavras é o tropeço da verdade!

O que é honestidade? Democracia? Direito? Justiça? Essas provavelmente foram fugitivas de primeira hora que abandonaram meu dicionário. Palavras corredoras à procura de objetos num mundo pós-moderno, pré-histórico, para aquém dos Ukuluns.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

O MAGISTRADO E A REPÚBLICA

Na França revolucionária, em meio a muitas xícaras de chocolate, e provavelmente em uma mesa simples, no interior do Le Procope – um café até hoje existente na ‘Rua da Antiga Comédia’ - Voltaire ousou sonhar com a igualdade entre os Homens perante o Estado.

Ele, que vinha da França aristocrática, onde as pessoas possuíam valor apenas em razão de sobrenomes, dos títulos nobiliárquicos, das propriedades e das riquezas, imaginava uma República onde a vida poderia ser vivida debaixo de um único conceito, mais humano e mais honesto: citoyen!

Acreditou, certamente, na Justiça que não conhece rosto, dinheiro ou poderio. Sonhou uma Justiça criminal onde as leis são aplicadas independentemente das vontades privadas, acostumadas a submeter o Estado e a corromper verdades. Certamente Françoise-Marie Arouet acreditou em um mundo onde o juiz criminal não seria submetido a opressões, calúnias, difamações e perseguições pela só razão de cumprir a sua função.

Imaginou, com segurança, que não existiriam, em um futuro próximo, a soberba de quem se sente acima da lei, e nem a indignação incontida de alguns homens em razão de um processo. A idéia de cidadão não era condizente, para Voltaire, com homens que concebem a si mesmos, como indivíduos a latere de qualquer ação do Estado, acima de qualquer normatização, pairando sobre qualquer crítica. Era a década de setenta, e do século XVIII!

De lá para cá o Estado mudou consideravelmente, mas algumas coisas não mudaram! As liberdades civis ampliaram-se, e os direitos humanos, que nasceram para proteger os homens do Estado, passaram a ser a razão mesma do Estado. A Justiça criminal passou a ocupar a função de também julgar os indivíduos em razão do assalto e da rapinagem de bens públicos e a permitir investigações dos atos de quem vê no patrimônio comum o combustível para o enriquecimento particular.

Mas o juiz desejado pelo iluminismo também é o avesso do que se percebe em Villefort, o conhecido Procurador Régio que condena ao Château d’If Edmond Dantes, no celebre romance de Alexandre Dumas. Ele é um juiz equilibrado, atencioso com as partes, que não se deixa enganar por acusadores e nem se amedronta frente aos esbirros. Ao magistrado sonhado por Voltaire não é dado o direito à sedução, e a ele não é permitido sequer perceber quaisquer propostas implícitas – ainda que recheadas da elegância cordial das academias - mas que tenham por objetivo ceifar o cumprimento da nobre função de ser correto.

A este juiz ideal é imperioso compreender que todo aquele que é submetido à ação da Justiça tem o sagrado direito a malquerença. Todo réu, todo investigado, e todo criminoso tem o singular direito de identificar no magistrado que julga a causa o seu supremo inimigo, o responsável por todos os seus atos, e o único a ver seus mais diversos delitos. Também ele, o juiz, tem de conviver com a idéia de ser julgado e analisado durante todos os seus dias, além de ser difamado e acusado de agir, impunemente, para a realização de seus próprios desejos. Nada mais natural do que o humano direito de culpar terceiros por seu próprio fracasso.

Em tempos de pós-modernidade são muito importantes as lições de uma República, na qual a justiça, as igualdades e as liberdades são acessíveis aos cidadãos. Infelizmente, esta compreensão de igualdade, base do sentido moderno de República, não é partilhada por todos.

Entender que o sentido do substantivo que nos qualifica – como se adjetivo fosse – reside exatamente na idéia de coisa pública, de espaço de todos, regiamente direcionada pelo senso de igualdade, às vezes é tarefa impossível. A República precisa ser mais uma vez, e sempre, fundada.

O exercício da jurisdição criminal nada mais representa do que um exercício de Republicanismo e de cidadania. Mesmo que este exercício seja vilipendiado, e seu autor tenha de suportar ameaças, difamações, tentativas de achaque e tentativas de constrangimento, é preciso guardar a lhaneza e a tranqüilidade para lembrar que se é, acima de tudo, servidor público.

O juiz imaginário, pensado por Françoise-Marie Arouet, sempre saberá que ninguém está acima das leis e do espaço público, mesmo que em dados momentos, e em dados lugares, seja necessário reinventar a República, ou mesmo instaurá-la, pois é certo que a alguns quadrantes do globo ela parece nunca ter chegado.