"Não gosto de ver correr cavalos nem touros. Eu gosto de ver correr o tempo e as coisas. Só isso." Machado de Assis

sexta-feira, 21 de maio de 2010

AS PALAVRAS E OS HOMENS

A palavra precede o homem. Esta é a mais importante lição dos Ukuluns, um povo que ocupou em tempos imemoriais as estepes de um continente que já não existe mais.

As informações que chegaram até nós vêm apenas de inscrições cuneiformes que são interpretadas e traduzidas por arqueólogos de uma única universidade, localizada no sul da França. Trata-se de uma civilização esquecida que se construiu pela palavra.

Ao invés de criar a sua própria linguagem, a civilização dos Ukuluns foi criada por ela. Eles são fruto das palavras pronunciadas e escritas, são conseqüências das letras arregimentadas para formarem sons. Até então, as palavras eram desprovidas de qualquer sentido.

Antes do acontecimento aqui narrado, elas eram apenas letras agarradas umas as outras em razão da necessidade de sobrevivência, pois o viver e o morrer eram fatos condicionados às possibilidades físicas dos seres pronunciarem-nas. Acaso uma letra se juntasse a outra sem que a união permitisse qualquer som emanado pelos trogloditas existentes nas estepes, a palavra nascente seria esquecida, e então estaria condenada a morte. O esquecimento da palavra era a sua sentença de morte, e o instinto de sobrevivência é que fazia com que as letras se agregassem de uma maneira ou de outra.

Conforme sabemos, em uma manhã invernal as palavras fugiram das escrituras e das bocas, e ganharam o mundo. Em fuga, diversas delas despedaçaram-se em letras, ditongos, tritongos, hiatos e sílabas - agudas e tônicas. Foi uma festa pagã, por assim dizer, de palavras - inteiras e mutiladas - que, em fuga para ganharem o mundo, divorciaram-se da tirania dos sons e das leituras ininteligíveis, e percorreram todos os limites do mundo conhecido. Não percorreram os quatro cantos por que, segundo se sabe, as estepes eram circulares, o que permitiu as palavras apenas circularem pelo mundo conhecido.

Sabe-se que as vogais foram se aproximando das coisas mais simples, mais terrenas, mais amenas. Chegaram mesmo a se afeiçoarem às coisas vivas, dando leveza e desenvoltura às matérias as quais se aproximaram. Já as consoantes, mais duras, mais inflexíveis, tenderam a chegar perto das coisas complexas, do metafísico, do etéreo, do intangível.

Não havia, até então, homens para delas se apropriarem, e as palavras corriam soltas, aproximando-se de um lugar qualquer para logo em seguida alçarem vôo em direção a outros objetos, outros seres e outros elementos. É provável que a idéia segundo a qual é através das palavras que se pode pensar e, portanto, voar, não fosse uma metáfora, mas sim uma recordação do tempo em que as letras e palavras voavam as estepes em busca de objetos.

Após séculos circulando, aproximando-se e depois fugindo de materiais, lugares, seres e coisas, um evento inusitado ocorreu. Uma palavra apaixonou-se tão fantasticamente por um ser inanimado que dele não mais quis se distanciar, e passou a viver uma relação de perfeita fusão, ou simbiose e, não mais que de repente, a palavra passou a significar o objeto, e o objeto tendia a ser conhecido pela própria palavra. Era o começo da era dos Ukuluns conhecida como ‘Era da significação’.

As palavras começaram a correr atrás de tudo o que existia para se apaixonarem e viverem a sua história de amor eterno. Tudo que até então existia passou a estar agregado a alguma palavra, em um romance que se dizia eterno e que se chamaria, segundo o vernáculo do futuro, denotação. A denotação ou significado denotativo era o nome do romance que se queria eterno, entre as palavras e as coisas.

Hoje quando acordei as palavras haviam fugido de meu dicionário, e as páginas do meu velho livro amanheceram em branco. Estamos no século XXI e é um tanto mais difícil acreditar que as palavras saíram para passear e branquearam as minhas páginas. Talvez algum efeito cientificamente explicável, ligado à tinta ou ao papel, seja mais factível.

A história que eu desejo contar não termina aí. Não chega ao fim com a fuga das letras inanimadas, em busca de objetos de furtiva paixão. Assim como no mundo dos homens, no mundo das palavras os amores não são eternos, e algo que hoje se conhece por certa palavra, no futuro poderá ser conhecida por outra palavra.

Se nos tempos dos Ukuluns assim foi, nos tempos dos pós-modernos em que vivo este movimento parece ser diferente. Hoje vivo o tempo das palavras fugitivas. O tempo das palavras que deixaram meu léxico para correrem atrás de outras formas. A fuga das palavras é o tropeço da verdade!

O que é honestidade? Democracia? Direito? Justiça? Essas provavelmente foram fugitivas de primeira hora que abandonaram meu dicionário. Palavras corredoras à procura de objetos num mundo pós-moderno, pré-histórico, para aquém dos Ukuluns.

Um comentário:

Unknown disse...

Muito bom!!! essas palavras deixaram de ser absolutas, onipresentes, e se relativizaram...