"Não gosto de ver correr cavalos nem touros. Eu gosto de ver correr o tempo e as coisas. Só isso." Machado de Assis

terça-feira, 28 de setembro de 2010

QUANDO OS LOBOS SÃO MUITOS

Era uma vez uma sociedade de 12 (doze) indivíduos, onde dois deles eram homossexuais. Um belo dia de sol, reunidos em assembléia, depois do discurso inflamado de um deles e da defesa de ambos os acusados, os dez heterossexuais resolveram que os dois diferentes teriam de morrer.

Esta decisão foi absolutamente democrática, na medida em que dela participaram todos os cidadãos de nosso país fictício, houve procedimento que levou a decisão, e a ordem de execução partiu de uma ampla maioria.

Como o nosso exemplo bem demonstra, a democracia absoluta pode conduzir a uma atrocidade, e a negação da própria racionalidade. Quando leio e quando ouço expressões como “tudo pela democracia” penso sempre em todo o mal que o mundo já experimentou em razão de decisões, julgamentos e compreensões vindos da maioria.

Isto não quer dizer que a nossa sociedade duodecimal seria mais justa e mais feliz se apenas dois – diferentes ou iguais – resolvessem, com base em alguma lei, escravizar os outros dez, optando sozinhos por suas idéias de justiça e correção. Se algumas regras imemoriais justificassem o direito dos dois líderes hipotéticos de se sobreporem aos dez, até poderíamos ter leis sendo executadas, mas estaríamos ferindo da mesma maneira a racionalidade.

Como fica claro facilmente na simplória leitura do nosso segundo exemplo, o direito também pode comportar um mal.

Estamos sempre entre duas antíteses que exercem uma tensão entre si, em movimentos opostos: de um lado o direito, do outro, a democracia. Embora o direito tenha origem na idéia de maioria – posto que as leis são feitas por um Poder democrático – a sua aplicação sempre se dá pelo único dos Poderes estatais que não é, e nem pode ser democrático: o Judiciário.

Há sempre dois fantasmas que se escondem e estão à espreita do mínimo deslize em cada um dos pólos. Há o fantasma do direito, e também há o fantasma da democracia. O autoritarismo, que sempre se apóia no direito, e o totalitarismo, que sempre se justifica na vontade da maioria. Ambos são opressores, ambos sufocam as diferenças, ambos agridem a racionalidade.

Este é o paradoxo de toda compreensão política, ou o “paradoxo da democracia” como quer a cientista política e filósofa belga, de origem indiana, Chantal Mouffe. O nosso grande desafio é equilibrar este pêndulo e permitir que o direito reduza a tendência totalitária da democracia, e que a democracia reduza a tendência autoritária do direito.

Por esta razão, é preocupante ver os exercícios de demonstração da ‘vontade do povo’, em julgamentos populares que se realizam através da imprensa, ou da internet, e utilizando-se do senso comum. Também pode ser assustador ver a tentativa de encontrar o ‘espírito do povo’ em manifestações que se autodenominam ‘tribunais populares’, ou ‘tribunais da terra’ ou algo que o valha. Enquetes populares também se manifestam com a mesma virulência desarrazoada.

Estes julgamentos construídos para dar vazão aos anseios imediatistas ou perenes da maioria não diferem muito da decisão de soltar Barrabás e condenar Jesus à crucificação, o que parece ter sido injustificável até mesmo para um agnóstico.

Ainda que movida pelas razões certas, as decisões da maioria podem sufocar a racionalidade, e deixar de lado as maiores conquistas da modernidade. 
Acaso Hitler era um homem apenas, ou trazia consigo todo um país que se deixava caminhar naquela direção? Está claro que suas decisões foram toleradas e aprovadas pela maioria do povo alemão, e isto se constitui em um trauma da modernidade.

Da mesma maneira, Mussolini e Hugo Chaves também se apóiam na regra da maioria. Não foi diferente com Juan e Evita Perón e com tantos outros delinqüentes estatais.

Isto não quer dizer que devamos permitir a ditadura de poucos autoritários, quer apenas deixar claro que não é possível submeter aos desejos plenos e da maioria direitos que são caros à idéia de pluralidade, de diferença e de tolerância.

Até posso concordar com o pensamento segundo o qual “para o direito nem sempre basta cercar as ovelhas. Às vezes é preciso gradear a toca dos lobos”. O problema é que a modernidade e a racionalidade ainda não conseguiram dizer, com certeza, quem são os lobos e quem são as ovelhas. E, pior, muitas vezes as ovelhas, todas elas reunidas, tendem a se transformarem em lobos sanguinários, ou a utilizar o rótulo de ‘lobo’ para gradearem os pastos de outras ovelhas.  
   

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O TROCO E A TROCA

Era o tempo do Rei – como disse Manoel Antônio de Almeida e ainda diz Ruy Castro – e aquele país estava dividido em províncias. Havia as províncias do sul, as do norte, as do leste e as do oeste. O norte era pobre e eternamente explorado, mas de lá vinha a inteligência de alguns sábios, a força de muitos negros e a esperteza de uns tantos Malazartes do sertão. Vinham todos com as matas e com os cerrados. Eram acima de tudo fortes, como diria Euclídes, o velho. Era o tempo do Rei!


Mas o mundo daqueles idos – tempo em que os bichos falavam – não era apenas época de reinados e províncias, era também o tempo da revolução e da mudança. Alguns tinham objetivo de levar aquele Reino para a modernidade, para a igualdade e para o desenvolvimento. Mas as províncias do norte eram o oposto disso. Eram governadas e guiadas pelo atraso; lá reinava a pobreza, a corrupção o clientelismo e o subdesenvolvimento.

Mas as coisas da política – principalmente em um reino onde os bichos falavam – tinham sempre formas impensáveis, até irracionais. Justo daquele lugar, da mais pobre de todas as províncias, surgiu quem se apropriasse do movimento. Ali, onde diziam os locais “até boi voava, e de asa quebrada”, surgiu quem estivesse disposto a ser guiado pelas forças – e fazer-se de guia delas – rumo à democracia revolucionária que encabeçava o Rei.


Mais que estranho e incoerente, não? Diziam todos os bichos, e todos os homens.

Era um velho Marquês que aliava o discurso intelectual do norte, à esperteza que também campeavam por ali. E ele surgiu como um primeiro e o maior dos democratas. Logo ele, que usava e abusava da arte de ser imperial, foi um dos que mais emprestou sua lábia - e sua habilidade nas coisas “por debaixo dos panos” - aos democratas que nasciam.


E justo ele, que era um déspota e um larápio conhecido naquele canto provincial, pousou em todo reino como o homem da modernidade, do avanço e da intelectualidade. Logo ele que era useiro e vezeiro em permitir que crianças padecessem de fome – pois deixava que o dinheiro da merenda fosse desviado por homens de nariz comprido; logo ele que era responsável pela ausência de assistência médica, por que permitia que o dinheiro da saúde fosse desviado por descendentes do povo do deserto; logo ele que vivia nababescamente em uma província miserável... logo ele!!!! Um democrata? Um homem avançado? Como isso era possível?

Era o tempo em que os bichos falavam, e também era o tempo do Rei, e nada melhor do que ouvir a voz de um papagaio falante – provavelmente parente daquele que ficou conhecido como “papagaio de pirata” tempos depois. O passarinho curioso descobriu, em conversa velada entre o Rei e o provincial Marquês, a razão de tudo aquilo!


Contou a avezinha colorida, para uma “ama de leite” que contou para muitas outras, que uma visita se deu na alcova do monarca.

Vinha o fidalgo de província dar notícia de todas as movimentações que havia feito, na “casa dos eleitos” para defender as opiniões do Rei democrata. Descreveu contatos, declamou prestações de serviço, submeteu-se a birras e até hipotecou uma solidariedade tal que o próprio Rei ficou atabalhoado. Isso sem contar as próprias lágrimas vertidas. Era a subserviência em pessoa.


Mantinha todas as forças que adquirira durante anos de mandonismo provincial à disposição do déspota, inclusive deixando claro que tudo o que fazia era para o real deleite de sua alteza.


O reino era grande, a província miserável, e o fidalgo – que já fora déspota – tinha uma atuação global completamente diferente da sua cor local. O discurso externo era o inverso da prática interna.

Diz o papagaio que o Rei ouviu, e ouviu, e pensou..... parecia que ponderava mentalmente entre questões de princípios e a utilidade da estratégia. Comparava o tamanho e a força da reles província com a importância da revolução democrata em todo o Reino. Pensava e também se deixava levar pelo fisiologismo natural de todo Rei.


E como lhe era útil aquele aliado contraditório, nada mais cômodo do que aceitar a oferta e os atos genuínos de defesa e proteção. Por questão de tática e estratégia não havia razão para o Rei declinar de toda aquela ajuda oferecida na capital e com alcance em todo o universo governado.

Mas conta o papagaio, e recontam as “amas de leite”, pretas que cresceram contando estórias nas senzalas, que ao final desta visita, quando já ia saindo o Marquês fidalgo, depois da derrama de subserviência, o Rei lhe fez intrigado uma pergunta:


- Meu caro Fidalgo, me fazes tanto e não pedes nada em troca. Não queres de troco nada de nada?

- Amado Rei - disse o fidalgo - o que faço é apenas para lhe ajudar e por devoção a vossa alteza. Tinha até um pequeno problema provinciano, por demais local, mas existem questões maiores e mais importantes e não vos aborreço com isso.


- Mas do que se trata então Marquês?

- Questões menores, mas precisaria manter as coisas como estão na minha província para que todos nós continuemos devotos ao Rei.


- Então que seja assim....

Conta o papagaio, que ao ouvir isso, o fidalgo esboçou um contido sorriso de vitória, mas conservou-se impassível para ouvir a última frase, e que se repete ad aeternum na história daquela província:- Pois bem, meu caro fidalgo, o troco é seu!

OS JUÍZES E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL


O fato de alguém ser magistrado não o dota de qualidade específica ou lhe atribui condição superior aos demais cidadãos para interpretar a Constituição. Dar significado aos dispositivos constitucionais não é privilégio de quem segue a carreira de juiz, pois a atividade político-interpretativa pode ser exercida por qualquer pessoa integrante da comunidade. A boa interpretação sequer é privativa dos operadores forenses e dos acadêmicos, embora seja difícil localizar a pré-condição de “notável saber jurídico” em quem não seja bacharel em direito.

No mês de agosto o Ministro Eros Roberto Grau completou sua trajetória no Supremo Tribunal Federal, e a perspectiva deste ato fez aflorar a discussão acerca de quem poderia - ou deveria - ser indicado pelo Presidente da República para substituí-lo.

A AJUE, Associação dos Juízes Federais do Brasil elaborou consulta ampla entre seus representados e formou lista sêxtupla para ser apresentada ao Presidente da República. Ela também vem afirmando que é chegada a hora da nomeação de um Juiz para a Corte Suprema.

É razoável e legítimo este movimento político?

É preciso perceber que o Supremo Tribunal Federal não é exclusivamente Corte Constitucional, embora na maioria das vezes exerça esta função. Isto por que além de interpretar a Constituição, fazendo uso do controle concentrado e do controle difuso, o Tribunal ainda possui outras competências, recursais e originárias, que o configuram como um Tribunal Supremo, não necessariamente constitucional.

Julgar um Congressista que cometeu um crime pode ser considerada uma relevante função política, mas certamente ali não se trata de matéria constitucional, até por que os elementos objetivos e subjetivos do tipo penal, em se tratando de Deputados e Senadores, não diferem daqueles encontrados quando o réu é cidadão comum. E não é só em matéria penal que a Corte deixa de exercer função estritamente interpretativa da Constituição.

No julgamento de questões que digam respeito aos conflitos naturais de toda sociedade, o modelo de diferenciação funcional vigente impõe ao juiz esta função. Em outras palavras, cabe a quem exerce o cargo de magistrado dirimir conflitos. Se entendermos equivocada e sectária esta atribuição – quando se trata de STF – não teremos razão teórica para negar a utilidade de qualquer bacharel em direito ser nomeado para exercício em qualquer vara, de qualquer comarca e em qualquer Estado.

O senso comum pode até entender que o advogado, o delegado, o procurador ou o leigo interpretam as leis e decidem melhor que o juiz. É possível até que, conforme este ou aquele referencial isto seja verdade. Conquanto, abolir a diferenciação significa implodir o sistema, e já não haveria mais razão sequer para a carreira ou para o concurso público. A legitimidade formal é fundamental para a existência do modelo de jurisdição.

Se para interpretar a Constituição não é necessário ser magistrado, para efetivar o sistema normativo, com força e legitimidade, é fundamental que o agente seja um juiz. Considerando que o STF exerce atividade dúplice – Tribunal Constitucional e Tribunal comum – não é razoável que os juízes pleiteiem sua participação na Corte?

Por outro lado, se é normal no Brasil e no resto do mundo que os latinos, os nipo-descendentes, os imigrantes, os indígenas e os afro-descendentes busquem um lugar na Corte que decide as questões constitucionais, por que não seria legítimo que as mulheres e as demais orientações sexuais também fizessem o mesmo?

Nesta linha de argumento, por que não seria legítimo que procuradores, juízes, delegados e advogados exercessem o direito ao movimento político para se verem contemplados?

No Brasil, por que seria sectarismo pleitear que o próximo nomeado seja alguém que hoje exerce o cargo de juiz em qualquer instância ou Tribunal? Será que dentre todos os magistrados do Brasil, pessoas que têm por profissão a missão de julgar, não haveria um só que cumprisse o requisito do ‘notável saber jurídico’? Impensável! E o que faz alguém acreditar que um bacharel que nunca exerceu esta função sempre a exerceria – no STF - de forma mais plural e competente?

O Supremo Tribunal Federal deve ser o local de exercícios plurais e hiper-complexos. Local para conservadores e liberais – à esquerda e à direita. O acesso deve ocorrer por competência, não por origem, mas é legítimo e razoável que categorias e classes desejem que o indicado – dotado de conhecimento e reputação ilibada – seja um integrante das suas hostes.Isto é plural, é tolerante e é democrático, e não há razão para que este direito deixe de ser exercido em qualquer lugar do mundo, principalmente onde vigorar o Estado de Direito.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

UNIVERSIDADE E TOTALITARISMO

Ninguém sabe ao certo conceituar ‘pós-modernidade’, nem dizer com precisão o que significa ser ‘pós-moderno’. Apenas é possível, por diferenciação, afirmar uma pretensiosa antítese à modernidade, como que desejando denotar a superação de um período que já passou.

Ninguém tem dúvidas de que os tempos que correm suportam uma vida pública e privada diferente daquela de bem pouco tempo atrás. Mas os pensadores não conseguem diagnosticar com precisão o que mudou - quais as causas - e para onde iremos daqui para frente. Não conseguem porque talvez não tenhamos ainda o distanciamento necessário para pensar sobre nós mesmos.

Zigmunt Bauman, do alto da sua lucidez, brada em sons poloneses, que já não temos uma ‘grande narrativa’ para explicar, como diria Agostinho Ramalho, ‘quem somos e para onde vamos’. Outros lançam mão de Nelson Saldanha e dizem que confundimos ‘o jardim com a praça’. Alguns lembram de Roberto da Matta, para afirmar que já não sabemos quem são os ‘malandros’ e quem são os ‘heróis’, em meio a este carnaval pós-moderno.
Os apologistas do nosso tempo sugerem ao debate o neoconservador Francis Fukuyama para dizer que a caminhada acabou, e chegamos, em fim, ao ‘fim da história’.

Com tantas divergências na maneira de verificar o que ocorre com o Estado e suas instituições, e também com a sociedade hoje em dia, seria natural que convivêssemos com as diferenças e com as oposições, e que a vida se tornasse um mosaico de pensamentos e de homens que se toleram mutuamente. Mas não é assim!

As estruturas de poder – ou os sistemas hiper-complexos - tendem todos ao totalitarismo ou ao autoritarismo. Quando se trata da maioria sufocando a minoria, o que se realiza é o pensamento totalitário, e quando a minoria oprime a maioria o que se vê é o autoritarismo realizado. Neste aspecto, a pós-modernidade é avassaladora. Ambos – totalitarismo e autoritarismo - têm horror ao debate, medo das diferenças, pânico das interrogações e dos questionamentos. A eles reagem furiosamente.

Neste aspecto, o pós-moderno não vem ao debate, não acolhe as análises das contradições, mas apenas tem as suas respostas e não aceita as digressões, as críticas e as contraposições. Não pensa o outro como titular de idéias e direitos, não respeita o indivíduo pelo só fato de existir e de pensar de forma diferente. Talvez isto seja assim por que a tendência de quem acredita na sua onipotência seja pensar que a história começou e acabou no tempo da sua existência. São homens como o imperador Chinês Ch´ín Shi Huang, que não obstante ter determinado a construção da Grande Muralha, ordenou a queima de todos os livros do império, para que a cultura começasse a partir de seu reinado.

Na verdade, esta noção de ‘em fim a glória’ traz a reboque o aparelhamento das instituições, e o acoplamento de sub-sistemas que deveriam auxiliar na diferenciação, mas são confundidos e negados pelo totalitarismo.

Este teatro de idéias, quando cede às tendências totalitárias, torna-se apenas um aparelho: aparelho de parentes, de asseclas, de necessitados. Isto passa pela utilização do poder para gerar poder, e pelo célebre acoplamento de forças que possuem seu lugar específico, mas que são abandonadas em benefício do acúmulo.

É próprio do modelo totalitário, em voga nesta confusa pós-modernidade, o acoplamento de representações que deveriam realizar a tolerância e garantir as diferenciações, ao modelo que se impõem como verdadeiro e benéfico. A literatura demonstra, através de tantos como Hannah Arendt, que o desfecho deste modelo não é nada bom.

Por outro lado, também é próprio deste modelo a ‘invenção de inimigos comuns’, e a política maldosa do terror e da intimidação, como instrumento de garantia da aceitação. Para isto se pratica a distorção de fatos e a dedução de motivações e de características desqualificadoras. Cria-se um totalitarismo opressor, e nega-se o passado, criando a verdade sabida e incontestável.

Mas não seria o caso das Universidades capitanearem o processo de superação dos autoritarismos e dos totalitarismos?

Seria, mas não é o caso!

É no espaço reservado às idéias que a intolerância e o totalitarismo mais se desenvolvem, e a imposição dos ‘momentos totais’ e das ‘verdades absolutas’ se afiguram em profusão.

Talvez o filme ‘A Onda’ devesse ser projetado em algumas salas de aula.

Ser tolerante, acadêmico, homem de idéias e afeto às discussões não é característica de todos os professores e de todos os acadêmicos. Alguns se dedicam a esta luta de idéias por amor ao debate, outros pela paixão pelo poder, pelo messiânico ânimo de controlar a tudo e a todos.

Como disse um dia Mário Vargas Llosa, “aqueles que amam sua vocação tendem a seguir lutando as trinta e duas guerras do Coronel Aureliano Buendía, ainda que os derrotem em todas.”


Outros, reservam sua vocação para o poder, e fazem da sala de aula um instrumento.

Ser professor e pesquisador, nas universidades é como lutar as trinta e duas guerras lembradas em “Cem Anos de Solidão”, de García Marquez, e mesmo assim permitir-se manter a gana de fazer sempre o mesmo - e cada vez melhor – e ainda seguir sendo derrotado pelo pós-moderno desejo de acumular poder.

Mas como compreender e superar a realidade que – esta sim – é implacável com o moderno convívio com a diferença e com a circulação de poder? Como superar as dificuldades se na própria universidade seguirmos incapazes de tolher o acúmulo insano de poder, o aparelhamento das instituições, o totalitarismo decisório, a criação virtual de inimigos, a privatização das decisões, a negação da história e a inversão de valores acadêmicos?Um pouco de modernidade faria bem, para não corremos o risco de virarmos pré-históricos, e não pós-modernos.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

MARX ESTÁ MORTO.. E NIETZSCHE TAMBÉM


O maior cientista político italiano da segunda metade do século XX suscitou a discussão acadêmica em torno da sobrevivência da dicotomia ‘direita e esquerda’. A questão teórica e prática - que tomou conta das ditas novas esquerdas depois da queda do muro de Berlin - longe de estar superada, revela-se muito importante para a compreensão do mundo latino-americano nesta primeira década, do novo século.

Norberto Bobbio certamente não esquadrinhou todos os pontos da questão, mas o seu ‘pequeno grande livro’ continua chamando à leitura os livres pensadores. ‘Destra e Sinistra’ – título original em italiano - tenta responder a uma pergunta da intelectualidade do século passado, mas aviva problemas da nossa própria realidade.

Quem é de esquerda? Que governos são de esquerda, ou marxistas? Os aliados construídos nas contingências eleitorais são agora, milagrosamente, eles também, de esquerda, e simpatizantes de Marx? Alguém ainda o é nos moldes de Josef Stalin ou Erich Honecker? E Karl Marx, ainda está vivo para fortalecer os nossos sonhos e os nossos desejos de igualdade?

Certa vez, na Itália, li pichada em um muro da universidade de Lecce, onde eu estudava, frase repleta deste sentimento pós-moderno de perda de referencial: “Marx está morto, Nietzsche também, e eu não me sinto muito bem”! Anos depois encontrei esta mesma frase em um livro de Zigmunt Baumann.

Na confusão da ausência de identidade teórica, ainda há a diferença entre direita e esquerda? E se há alguma diferença, ela ainda é importante?

O marxismo atraiu diversas mentes brilhantes em todo o mundo no século XX, e por diversas razões. Para diversos pensadores, como Maurice Merleau-Ponty, era simplesmente por que não se tratava de “uma” filosofia da história, mas “a própria” explicação do processo histórico.

Mas a verdadeira razão de tantas mentes brilhantes terem se dedicado ao marxismo e às esquerdas, conforme o polonês Leszek Kolakowski, reside no fato da teoria de Marx ser uma filosofia ampla, explicativa da seta da história e que prometia um futuro igualitário, onde homens e mulheres não conheceriam a diferença que causa inferioridade. Uma conjugação de racionalismo histórico com idealismo otimista.

Os homens que não desejavam a rapinagem do Estado, e nem a submissão de outros homens à conta de seus benefícios particulares apaixonaram-se pela teoria marxista. Mas não só eles a utilizaram, e este talvez tenha sido o problema!

Marx não poderia imaginar que não seriam os trabalhadores das grandes cidades a tentar construir a igualdade, mas sim uma casta intelectualmente privilegiada, depois militarizada, em um país atrasado, semi-feudal e corrupto: a Rússia. Nem poderia supor que tal controle burocrático e redutor das liberdades fosse se estender de forma totalitária a todo leste europeu.

Como nos diz Tony Judt, os melhores alunos do marxismo terminaram sendo uma “camarilha de tiranos”.

Também ele, Marx, não poderia prever que sistemas políticos vazios de conteúdo, no todo igualáveis às suas próprias antíteses, se utilizariam da mensagem do marxismo para praticá-lo de forma equivocada, caudilhesca e populista em um autêntico baile de palavras, onde tudo aquilo que fora combatido na origem, não mais que de repente se tornaria aceitável, palatável, e aliável.

Eric Hobsbawm, O lord da esquerda inglesa, ou o ‘Mandarim Comunista’ foi o historiador responsável por toda a formação de pensadores de minha geração que abraçaram a compreensão marxista da história, por verem nela não apenas uma grande narrativa das nossas vidas passadas, presentes e futuras, mas principalmente por vislumbrarem uma esperança na construção de um universo de iguais.

Hobsbawm aceitou academicamente, e passivamente, os desvios da história do comunismo marxista-estatal, principalmente no leste europeu. Talvez o velho Mandarim não perceba hoje uma negação estrutural do marxismo consistente na aliança em outras partes do mundo, dos ditos marxistas com banqueiros corruptos, empresários mal intencionados e políticos fisiológicos.

Talvez sequer veja mal no fim das liberdades de imprensa, na redução do direito à diferença, nas relações amistosas com criminosos e na manutenção de “tudo como era dantes, no quartel de Abrantes”, como diriam os portugueses que não fizeram a Revolução dos Cravos.

Não é possível pensar como Bobbio, o velho professor italiano, acerca da diferença entre direita e esquerda! Não é possível vê-la no horizonte.

No mundo pós-moderno, no Brasil do século XXI, e no Maranhão dos anos 2010 a prática venceu a teoria, e fundiram-se as antíteses teóricas. A prática - como projeto de poder - engoliu a teoria, como desejo de realidade.

Cabe aos velhos marxistas, oposicionistas de todos os regimes, e quase ídolos de meu tempo, fornecerem as respostas à pergunta do poeta Vinícius de Morais, quando em música interrogou o seu Criador:

“Pergunto a Deus, escute amigo: se foi para desfazer por que é que fez?”

Marx está morto.... Nietzsche também...


quinta-feira, 17 de junho de 2010

BAFANA-BAFANA: QUEM SOMOS NÓS?

Quando Adolf Eichmann foi julgado em Jerusalém pelos crimes de guerra nazistas – e condenado principalmente por tomar parte na idealização e execução da Endlösung, ou ‘solução final’ - algo chocou a racionalidade do mundo ocidental: este algo foi a banalidade do mal.

Diante de seus interrogadores e juízes, ávidos por encontrar respostas para centenas de mortes, o criminoso de guerra apresentou-se ao mundo como um homem normal, que conservava a sua racionalidade na vida cotidiana. Isso era chocante! Como era possível levar filhos a escola, ir normalmente a missa, dar presentes no natal e ao mesmo tempo praticar tantos horrores?

Matar demonstrou-se banal! Segregar, remeter homens - filhos de outros homens - para guetos e campos de concentração, e exterminar os diferentes considerados inferiores mostrou-se simples, quase casual.

É da essência do totalitarismo o desfazimento da condição humana. E quando a humanidade mergulha em defesa de uma idéia que se apresenta como compreensão perfeita e total, isto pode ser mais poderoso que a racionalidade moderna, pondera Hannah Arendt.

O holocausto era uma atitude que soava como desejo da maioria de um Estado, era tolerado por vários outros, e era, em fim, para desespero da racionalidade, algo normal para mais que alguns homens que puderam ser classificados como loucos.

A normalidade do execrável chocou os racionais modernos.

Os filhos da segunda metade do século XX defendem as suas parcelas de razão e seus espaços de modernidade, e deixam claro que o ocorrido foi um acidente, um atropelo do mal no século que já se foi. Para benefícios de suas consciências defendem que o holocausto não possui nenhuma relação com as nossas práticas de Estado e de sociedade atuais.

Será mesmo assim?

Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, o Marquês de Condorcet, em plena revolução francesa escrevia sobre a solidariedade, sobre a fraternidade e abominava o utilitarismo revolucionário do pequenino Maximilien François Marie Isidore de Robespierre.

Mesmo naqueles idos, quando a igualdade entre credos, cor da pele, sexo e habitat não pareciam consequencia natural da humanidade... mesmo em época como aquela em que nasceram os ideais de liberdade, fraternidade e igualdade, havia quem se deixasse levar pela compreensão total do mundo, e usasse a guilhotina como arma para ceifar cabeças: no sentido figurado e também denotativo.

A desconsideração com outros homens, e o desvio moral e humano de tratá-los como objeto está fincado no coração do mundo moderno, e não deve ser compreendido apenas como desvio da sanidade, mas como possibilidade das nossas existências. Desconhecer o ‘mal’ não nos protegerá dele.

Não faz tanto tempo, após o holocausto e no tempo em que os quarentões de hoje freqüentavam a escola, o país que hoje sedia a copa do mundo de futebol segregava brancos e negros, separava as vidas pela cor da pele. E o Estado também matava os subjugados, quando se sentia ameaçado.

Era o regime do Apartheid!

Em Uganda, Idi Amin Dada Oumee, o “Açougueiro de Kampala” foi responsável por cerca de trezentas mil mortes. Anos depois, em 1994, quinhentos mil homens e mulheres Tutsis foram assassinados em Ruanda, pelas milícias Hutus.

Em todos estes casos, as mortes, as desconsiderações da humanidade podem ser consideradas pré-modernas, mas se deram por intermédio de homens que se abeberaram do pensamento ocidental. Idi Amin trabalhou no exército inglês; o dinheiro utilizado para financiar o genocídio de Ruanda foi desviado das ajudas internacionais que vieram do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial; o Apartheid, por sua vez, era tão somente um regime de colonos europeus brancos sobre uma maioria africana negra.

E ainda que não se fale em genocídio, o que dizer da utilização da miséria e da pobreza africanas apenas e tão somente para verter daquele continente ouro, diamantes, marfim e outras riquezas que lastram os países ocidentais racionais? O que dizer, também, da realidade exposta cruamente em “O Jardineiro Fiel” onde se vê a utilização daqueles homens iguais a nós, quando muito, como cobaias de pesquisas farmacêuticas internacionais?

O olhar romântico e festivo do mundo ocidental sobre o continente africano falseia o tipo de relação que nós possuímos com a mãe África. Falseia o cisma na racionalidade que a história recente daquele continente causou, tal e qual o holocausto. Este olhar é exercitado por europeus correndo o risco de ser hipócrita; é exercitado por nós latino-americanos sem nos darmos conta de que ele pode ser apenas uma forma de não enfrentarmos nossos próprios demônios.

A jabulani rola. As vuvuzelas troam. Nós ouvimos. Nós aplaudimos. E o mundo segue.
Bafana-Bafana significa “garotos-garotos”. A África conserva a alegria dos meninos que se maravilham com o mundo. Eles sabem quem são. Nós talvez não saibamos quem somos nós.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

O DIREITO E A PÓS-MODERNIDADE

Estamos na pós-modernidade! Esta afirmação traz conseqüências diversas para o jurista preocupado com o modo de pensar e a maneira de exercitar o discurso jurídico. Se a pós-modernidade traz consigo uma nova forma de viver em sociedade, e afigura-se uma nova era na qual vivemos, obviamente os discursos da sociedade sobre ela mesma e seu discurso jurídico-normativo devem se adaptar a mudanças na base sobre a qual devem operar.

A sociedade, ao modificar a sua forma de ser, e ao diferenciar a leitura que ela própria faz de si mesma, transforma obrigatoriamente o discurso do direito, que se diferencia do discurso jurídico moderno, ao menos em parte. Trata-se de uma diferenciação natural que surge para adequar a aplicação do direito às novas hipóteses fáticas e às novas conformações da sociedade.

Estar imerso em algo que se diferencia do moderno, mesmo reconhecendo todas as conquistas que a modernidade trouxe para a humanidade, significa conviver com o novo e com o inesperado. Este reconhecimento não pode confundir-se com o discurso da anti-modernidade. Viver a pós-modernidade é vivenciar diferenciações discursivas e concretas que fazem deste período da história das sociedades algo mais complexo do que qualquer outro em toda a vivência do homem.

Embora não haja uma unanimidade acerca do que significa o termo pós-modernidade , nem uma unicidade terminológica, é fácil perceber que todos os conceitos mencionam mudanças, diferenças, características desiguais em comparação as da modernidade.

O nosso mundo – temporalmente tomado - já está claramente diferenciado de outras realidades representativas de outros períodos no decorrer da história. A forma da sociedade já não é mais as mesmas.

É impossível dizer se isso é bom, ou se isso é mau. Muito provavelmente não há nem correção e nem acerto. Esta forma de viver é apenas a realidade, e nenhum discurso político, sociológico ou jurídico tem o condão de negá-la. Ela não é boa nem má, é apenas outra maneira de viver ‘o’ mundo e de existir ‘no’ mundo. É uma forma sensivelmente diferenciada daquela que possuíamos 50 anos atrás. O que há é uma diferenciação, e esta diferenciação comporta as análises dos diversos discursos hoje existentes, e que se distanciam cada vez mais do discurso moderno.

Há que se admitir que o pensar pós-moderno não pode, e nem deve, se apresentar como um discurso legitimador do neoliberalismo, ou uma negação das conquistas da modernidade.

Dizer que a sociedade adentrou na pós-modernidade não implica em negar avanços e conseqüências da modernidade, mas sim a constatação de uma diferenciação estrutural, ou discursiva, entre períodos muito próximos no tempo. A hiper-complexidade da sociedade permitiu mudanças profundas em espaços de tempo reduzidos.

Estas diferenças não podem ser creditadas apenas ao avanço natural do tempo, e são modificações profundas na maneira de ser e de pensar da maioria das pessoas.

A sociedade contemporânea é neoliberal. É uma sociedade que reduz a critérios econômicos a maioria de suas relações e desfaz parte do mito da unidade e do progresso em comunhão de propósitos. O neoliberalismo tem a cara do individualismo, e representa um modo de vida e de pensar que privilegia soluções econômicas em detrimento de opções morais ou éticas. As justificativas financeiras, aliadas a um verdadeiro domínio dos espaços públicos por forças privadas acarretam em uma des-humanização das relações sociais e uma entronização dos critérios econômicos em searas dantes colonizadas por uma moral kantiana ou um discurso dogmático positivo.
Surge o problema: É possível ao direito sobreviver fora do leito das grandes narrativas?

sexta-feira, 28 de maio de 2010

GRAMPOS E PORCOS

Nada é por acaso! Então não foi por acaso que semana passada me caiu às mãos – ou melhor, às vistas – um belíssimo filme alemão intitulado “A Vida dos Outros”. Da mesma maneira não deve ter sido por casualidade que li ontem e hoje “O Pianista no Bordel”, do jornalista espanhol Juan Luís Cebrián.
Nos dois casos a temática visitada era a informação. Informação buscada, roubada e utilizada. O tema também era a vigilância e a vigília sobre alguém ou algo objeto do nosso desejo de obter informação.
Ambos, livro e filme, tratam das contendas entre todos e o poder, seja ele o poder do Estado, o poder político ou o poder dos criminosos. Poderia ser igualmente o poder da mídia. Livro e filme visitam as escutas telefônicas, os grampos ilegais, as liberdades e as funções públicas. Falam da polícia, dos governantes, dos juízes e dos criminosos; falam do Estado e do seu controle; falam também das liberdades, principalmente da imprensa.
Como posso comprovar, nada é por acaso.
Os métodos contemporâneos de investigação utilizam-se exatamente daquilo que dá o tom e representa o dom da vida contemporânea, e que se tornou a sua principal característica: o fluxo de informações.
Para investigar e descobrir o que se deseja é fundamental exercer uma clipagem sobre os canais de irrigação da informação, já que todos nós nos movimentamos por eles. Esta clipagem atenderá pelo nome de quebra de sigilo fiscal, bancário, telefônico, telemático e documental. Desviam-se os dados que informam os atos e conhece-se aquilo que há para ser conhecido. Ao contrário do que dizia Chacrinha, quem se comunica também se trumbica!
Como lembra o sociólogo alemão Niklas Luhmann, o nosso modo de viver moderno caracteriza-se pela comunicação, e a sociedade nada mais é do que um enorme sistema com esta natureza. Enxergá-lo, da melhor maneira possível, é o objetivo de quem atua. Mas quem atua?
Este é o ponto!
A modernidade rompeu com a aristocracia, e o mundo já havia rompido antes como feudalismo. Criou-se um Estado jungido por leis e por algo inusitado para o sistema oligárquico, feudal ou absolutista... a democracia. Nela, o povo elege quem governa e quem governa trabalha em prol do povo, executando leis e administrando não em proveito próprio, mas em atenção ao interesse público.
É a este Estado que cabe executar as leis. Para sairmos dos termos do século XVIII e voltarmos ao linguajar do século XXI, poderíamos dizer que é a este Estado que cabe executar a clipagem dos canais de comunicação, e sempre por uma razão pública: descobrir atos criminosos. O contrário, a utilização de escutas telefônicas por parte dos criminosos não tem nada a ver com a modernidade, é apenas um crime, como outro qualquer.
E este crime comum é mais ainda torpe quando estas investigações paralelas – que seriam legítimas se não se utilizassem de métodos ilegais – tem o objetivo de alcançar informações que o bandido reputa existentes para constranger, chantagear, intimidar e ameaçar o servidor do Estado.
Mas a torpeza às vezes não para, ao menos em tese, por aí. Ao descobrir que não há como atingir o servidor público, nada mais natural para o criminoso que tentar amealhar indícios de alguma querela pessoal com potencial para levar à ruína o agente do Estado. Vale a máxima que eu encontro em Diderot: não podendo atingir o Estado, busca atingir o homem. C´est la vie, et la melodie, diria o francês.
Mas como ‘cesteiro que faz um cesto faz um cento’, ao descobrir que nada há também nesta seara, é possível ao criminoso organizado – conforme conceitua a Convenção de Palermo, cidade natal deste tipo de organização – divulgar a plenos pulmões a existência da escuta criminosa, e espalhar boatos acerca da existência de atos iníquos praticados pelo servidor do Estado. Tudo vale para suscitar constrangimento, dúvida e chateação.
É natural que assim pense o bandido pela só razão de que é dado a todo criminoso tirar a medida dos outros pela fita métrica que lhe mede. Porém, nada mais satisfatório aos homens de bem do que provar, a todo instante, a volumosa diferença entre a grandeza e a pequenez.
Em tempos de overdose comunicativa e tecnológica é muito fácil escutar pessoas criminosamente. Quando a raposa toma conta do galinheiro, o gato vigia o pires de leite e o cachorro carrega a bandeja de lingüiça, todas as lambanças são esperadas. E todas são de responsabilidade do dono dos porcos.
Não foi sem razão que humanidade superou a teocracia, o feudalismo, a aristocracia e o despotismo esclarecido. Superou-as para dar vazão à uma velha poesia: uma rosa, é apenas uma rosa. Também tem o mesmo sentido: um bandido é apenas um bandido.

O DIREITO AMBIENTAL DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

O clima vem sendo objeto privilegiado de pesquisa dos cientistas das mais diversas áreas. As ciências vêm se preocupando há bastante tempo com as modificações no ambiente, principalmente após a constatação de que as temperaturas estão se modificando em todo o globo, e os eventos climatológicos causando distúrbios em proporções alarmantes.

As mudanças climáticas são uma realidade, e nada autoriza a constatação de que a terra caminha para o equilíbrio. Muito ao revés, os dados científicos demonstram que o desequilíbrio só aumenta.

Aquecimento global deixou de ser apenas um clichê a mais, e passou a ser um vocabulário usual para referir-se ao aumento da temperatura na terra. Não é possível mais falar em estabilidade do clima, pois o mundo vem suportando o aquecimento, o resfriamento, as secas e os dilúvios, onde antes havia equilíbrio climático e as estações se sucediam sem maiores alarmes. Nada está a indicar que, para a ciência, as preocupações com o ambiente venham a ser superadas por outra, em curto espaço de tempo.

É nesta nova seara do conhecimento, alçada ao patamar de campo de atuação dos mais variados cientistas, onde mais a ciência produz. E esta onda de geração de conhecimento atinge também as tecnologias, que não produzem conhecimento científico, dentre elas o direito.

As preocupações científicas com o clima não estão mais restritas ao primeiro mundo e nem dela se ocupam apenas os ecologistas, os biólogos e os climatologistas. Para as discussões estabelecidas em derredor do objeto ‘ambiente’ convergem as preocupações científicas, os sistemas tecnológicos e as opiniões do senso comum. Desta forma, o tema acaba por dominar grande parte do conjunto de pensamentos de cientistas, filósofos, sociólogos, juristas, turistas e viajantes: nada mais popular.


As mudanças climáticas propiciam o surgimento de novas tecnologias para serem usadas como instrumentos de enfrentamento da modificação das condições de vida no planeta. Dentre as tecnologias dos sistemas humanistas é possível destacar o surgimento do ‘direito das mudanças climáticas’. Visto sob a lente da dogmática jurídica, este modo de pensar as relações jurídicas ambientais constitui-se em uma ferramenta para a resolução de agressões humanas à sanidade do ambiente.


Esta abordagem das questões ambientais pelo discurso jurídico gerou um novo ramo do direito que se ocupa das mudanças climáticas, e se difere, por enfoque, por ângulo de enfrentamento e por objetivo, do moderno direito ao ambiente. Trata-se do direito ambiental das mudanças climáticas.

O discurso ambiental é politicamente correto em todos os lugares do globo. O direito ambiental das mudanças climáticas é o direito ambiental do tempo presente, do futuro que já chegou, e os correspondentes movimentos ecológicos pelo equilíbrio do clima são movimentos de vanguarda, na medida em que se dedicam a um assunto importante e relativamente recente.

No mundo pós-moderno as mudanças no clima operam de uma forma tal que a sensação reinante é exatamente a contrária a desejada segurança. A percepção da incerteza, devido a terremotos, tufões, tsunamis, maremotos, frio excessivo, secas e geadas, tornou a vida insegura. A incerteza está presente no nosso dia-a-dia, e a conseqüência desta insegurança é uma sensação de angustia, principalmente por não ser mais possível resgatar o estado de certeza que era um dos ícones da modernidade. Neste universo de incertezas que caracterizam a sociedade do risco na qual vivemos, uma das preocupações reinantes é com a nossa própria sobrevivência à médio prazo, e com a qualidade de vida que possuímos.

Em grande parte estas preocupações também adquirem volume devido à fácil visualização das agressões de Estados e empresas contra o ambiente, além de algum consenso científico no sentido de que estas modificações, fruto das atividades humanas, são as responsáveis pela alteração no clima da terra.

Exatamente pelo fato de haver entendimento científico no sentido de que as modificações no clima são fruto dos atos humanos, parece razoável pensar na atuação do direito como instrumento de defesa do planeta e de seus habitantes, principalmente por que estes atos, quase sempre, estão vinculados a uma atitude lucrativa ou vinculados à compreensões desenvolvimentistas.

Note-se que há sempre uma compreensão autopunitiva que nos impõe a sensação do erro e o sentimento de culpa por nosso modo de viver e por nossa maneira de ser. A nossa formação ocidental nos obriga à sensação de culpa cristã e à convivência com a idéia de erro que poderia ter sido evitado. Evidentemente que esta idéia de culpa não impõe uma carga idêntica para todas as pessoas. Mesmo assim, a maior fonte contemporânea de preocupações com o agir de forma politicamente correta tem sido a questão ambiental. A atitude de preservar o ambiente tem se tornado a razão de ser de muitas vidas, e a opção de luta de toda uma geração que se forma.


O direito ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado é hoje uma realidade e deixou de ser o detalhe quase esquecido do direito constitucional ou a nota de rodapé do direito administrativo. O direito das mudanças climáticas herda todo este patrimônio e começa a constituir-se não como um desdobramento natural de uma disciplina-mãe, mas como uma nova perspectiva do direito ao ambiente.

A visão privatista que tratava do ambiente apenas como um objeto do patrimônio individual sobre o qual era lícito gozar, usar, usufruir e dele se desfazer foi superada pela aceitação – agora majoritária – da idéia de que o regime do ambiente não pode ser o mesmo dos objetos ou coisas em geral. As regras e os princípios de direito ambiental vêm deixando de ser vistas como aquelas que emperram e atrapalham o progresso e passaram a ocupar o patamar de itens necessários ao desenvolvimento humano. É neste particular quadro que nasce o ‘direito ambiental das mudanças climáticas.’

Neste diapasão é fundamental para o jurista o estabelecimento de um discurso jurídico acoplado às novas compreensões do ambiente. É necessário um direito novo, mesmo que isso signifique abalar toda a estrutura de saber que tende à conservação e não à dinâmica. O discurso jurídico ambiental precisa ser um discurso de ruptura de paradigmas para que possa se afirmar como útil à sociedade.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

DESPEDIDA

Para Sergei Medeiros Araújo



Amigo. Imperfeitamente amigo.
Por ser indelevelmente humano.
Individual. Para ser irretorquivelmente único.
Pontual e finito. Como algo a ser levado consigo.

Amanheceu! Como amanhecerá todo fim de noite.
Alguém disse adeus! Como já disseram em muitas despedidas.
Não há novidades nos discursos, nas lágrimas e nas cartas.
Nada de novo, na cena de alguém que vai.
Ninguém encena um aceno diferente.
Nem mesmo o aperto de mão é outro.
É o mesmo de outro já esquecido.

O retorno é breve! Vai mas volta! Há uma parte que fica!
[Deixará marcas para sempre!
Todas as frases monótonas de uma mesma nova despedida.
Tolas hipocrisias vernaculares discrepantes
Da sincera perda medrosa de uma ausência sentida.

Eu comecei a me despedir quando nasci
Da parteira, do berço, do hospital, de minha mãe.
Separação da escola, da lancheira, das carteiras.
Das brincadeiras, das ruas e das ladeiras.


Deixei jogos, cervejas, festas e namoradas.
Os discos, os livros, o mundo e os desejos.
De tudo abandonei um pouco.
Deste pouco abandonaram-me muito.

A vida é despedida, e quando me despeço morro um pouco.
Já morri nas ruas, nas camas, nos romances.
Eu morri na Europa. Eu morri nas praias.
Morri em frases e em sorrisos.
Morro todos os dias quando acordo.
Morro todas as noites quando durmo.

Não quero mais me despedir.
Nunca mais quero o abandono.
Não quero deixar de ser.
Nunca mais morrer, não quero.

Na festa em que ruidosos homens se abraçam,
Onde mulheres choram e olham o futuro.
Eu me sinto ausente e morto.
Não me despeço. Para que não se disperse quem sou.

Engano-me, pois sei que é preciso.
Partir é necessário, é imperativo.
É obrigatório que parta e que conquiste.
E que fique o tempo mais lento, devagar.
Ele é sempre mais lento para quem fica.
É sempre mais veloz para quem vai.

Mas não sou hipócrita.
Não digo vá!
Não minto falando ao microfone: vá!
Sou humano, pegajoso e egoísta.
Cá, frente aos meus olhos. Já, ao lado dos nossos.
É a parcela de palavra que me cabe.
È o pouco que me resta como irmão.

E o medo da despedida é a sombra.
O pânico da partida é o negro vulto.
O desespero da ida é a escuridão.
A dor da viagem é a ausência de luz.

E que claridade é essa que eu temo a falta?
Qual a luz essencial que eu temo o apagar?
O terror atenderá pelo nome de esquecimento.
A luminosidade se reconhece na confiança eterna.

E de quanto eu posso falar!
Do muito que éramos e do pouco que somos!
Mas posso dizer que a estranheza e o esquecimento
São dragões odiosos que engolem a luz.

Mas há uma festa, uma enorme festa.
E na festa não cabe medo, não há lugar para receio.
Mas há medo, e o medo festeja por mim.
É o temor da perda do que é essência.
É a um só tempo reconhecimento de tudo.
Da amizade, da proximidade, da cumplicidade.

Irrompe a despedida – dizem – é o destino.
Mas ele existe, ou o fazemos? Inevitável?
Penso na distância... uma sensação.
Proponho a sua inexistência.

Relativizo a advertência do espaço,
Sinto-me perto, sem sê-lo de fato
Perto quando precisamos.
Irmãos quando desejamos.

Mas há uma festa, e dizem, é de despedida.
E o que há para festejar, então?
Acaso a partida merece aplausos?
Ou o aplauso é mera formalidade com faustos?

Ei-lo, ei-me. Repletos e nunca completos.
Diferentes e iguais. Comuns e especiais.
Partimos e morremos. Vamos e ficamos.
Aceito. Orgulho-me. Mas não conte comigo para despedidas.

Tente ir, sem partir.
Veja se vai, sem deixar.
E guarde consigo onde quer que esteja.
A mais perene de todas as certezas.
Amigo!

* Autor: Ney Bello Filho, Livro Cartografias Heréticas.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

O BAR DO MOSCA

“O Mosca” não era um bar: Era uma instituição. Para falar a verdade ele nem mesmo se chamava “Bar do Mosca”. Chamava-se Bar Sol, em homenagem a rua que lhe dava abrigo. Mosca era o apelido que nós botamos no garçom. Magrinho, algo entre albino e louro, muito próximo do popular fogoió, estava sempre trazendo cerveja e levando garrafas vazias. Possuía olheiras profundas, quase não falava e circulava nas mesas como uma mosca de padaria. E ainda tinha aquela coisa das duas mãos! Eram curvadas para frente, como que penduradas no antebraço e pendentes na direção do chão. Ele realmente parecia uma mosca. Por isso era o “Bar do Mosca”, e não da mosca.

Karl Marx era nosso companheiro eterno, e o regime militar era o “cachorro da festa”, que todos nós chutávamos com afinco. Chico Buarque, Vinícius de Morais, Garcia Marquez e Josué Montello eram visitantes sempre ilustres, e não raro surgiam outros passantes menos habituais, como Nauro Machado, Paulinho Pedra Azul, Flávio Venturini, 14 Bis e Mercedes Soza. Nada de música yankee. Nada de literatura imperialista. Quando muito um pouco de Beatles, e com alguma desconfiança. Ou um tantinho de Hemingway e Faulkner, mas com vigilância redobrada. E um brinde a Pablo Milanes!

Todos nós bebíamos ‘Cerma’, a cerveja mais barata dos bares citadinos, pois arrancar uma grana para beber Antártica era um pouco mais difícil. Quando pintava um vinho era o bom e velho “Tamandaré”, quando não era sucedido pelo Fiel “Sangue de Boi”. Whisky era quase impossível, a não ser como rescaldo da farra de algum dos nossos pais. E mesmo assim furtado, pois nenhum deles admitiria os filhos de quinze, dezesseis ou dezessete saírem de casa com uma garrafa de escocês.

Lênin também era habituée das rodas, e só superava o herói da Ilha, literalmente, já que vínhamos todos de ler Fernando Morais. E um brinde ao companheiro Fidel!
E a Guerra do Paraguai então? Genocídio Americano todos nós lemos e quase decoramos. E tinha quem puxasse um brinde a Solano Lopez.

Decididamente não era um boteco, era um complemento da escola. Papo de bêbado, papo de apaixonado, papo de esquerdista, e até mesmo papo de crise existencial rolava no “Mosca”. Só não pintava papo de mauricinho, conversa de playboy, e gosto de “filhinho de papai”. Mosca não era lugar para “boi-de-botas”, como dizíamos. Afinal, “nós somos nós, e boi não Lambe. E se lamber, nós corta a língua, pois chapéu de otário é marreta”. Entre “Cermas” quentes e queijo coalho gelado dizíamos isso de todos, e de nós mesmos. Não era um boteco. Era instituição. Era cultura, literatura, política e sociedade. Discurso jurídico veio algum tempo depois, mas aí já estávamos em busca do “Ponto de Fuga”.

A Geração “Bar do Mosca” possui hoje entre 40 (quarenta) e 44 (quarenta e quatro) anos. E ainda tem horror a playboy e mauricinho. Ainda discute política, cultura, literatura e sociedade. Todos pensam o Brasil, o Maranhão, São Luís e o mundo.

Talvez agora continuemos discutir aqui: No “Geração Bar do Mosca”.

AS PALAVRAS E OS HOMENS

A palavra precede o homem. Esta é a mais importante lição dos Ukuluns, um povo que ocupou em tempos imemoriais as estepes de um continente que já não existe mais.

As informações que chegaram até nós vêm apenas de inscrições cuneiformes que são interpretadas e traduzidas por arqueólogos de uma única universidade, localizada no sul da França. Trata-se de uma civilização esquecida que se construiu pela palavra.

Ao invés de criar a sua própria linguagem, a civilização dos Ukuluns foi criada por ela. Eles são fruto das palavras pronunciadas e escritas, são conseqüências das letras arregimentadas para formarem sons. Até então, as palavras eram desprovidas de qualquer sentido.

Antes do acontecimento aqui narrado, elas eram apenas letras agarradas umas as outras em razão da necessidade de sobrevivência, pois o viver e o morrer eram fatos condicionados às possibilidades físicas dos seres pronunciarem-nas. Acaso uma letra se juntasse a outra sem que a união permitisse qualquer som emanado pelos trogloditas existentes nas estepes, a palavra nascente seria esquecida, e então estaria condenada a morte. O esquecimento da palavra era a sua sentença de morte, e o instinto de sobrevivência é que fazia com que as letras se agregassem de uma maneira ou de outra.

Conforme sabemos, em uma manhã invernal as palavras fugiram das escrituras e das bocas, e ganharam o mundo. Em fuga, diversas delas despedaçaram-se em letras, ditongos, tritongos, hiatos e sílabas - agudas e tônicas. Foi uma festa pagã, por assim dizer, de palavras - inteiras e mutiladas - que, em fuga para ganharem o mundo, divorciaram-se da tirania dos sons e das leituras ininteligíveis, e percorreram todos os limites do mundo conhecido. Não percorreram os quatro cantos por que, segundo se sabe, as estepes eram circulares, o que permitiu as palavras apenas circularem pelo mundo conhecido.

Sabe-se que as vogais foram se aproximando das coisas mais simples, mais terrenas, mais amenas. Chegaram mesmo a se afeiçoarem às coisas vivas, dando leveza e desenvoltura às matérias as quais se aproximaram. Já as consoantes, mais duras, mais inflexíveis, tenderam a chegar perto das coisas complexas, do metafísico, do etéreo, do intangível.

Não havia, até então, homens para delas se apropriarem, e as palavras corriam soltas, aproximando-se de um lugar qualquer para logo em seguida alçarem vôo em direção a outros objetos, outros seres e outros elementos. É provável que a idéia segundo a qual é através das palavras que se pode pensar e, portanto, voar, não fosse uma metáfora, mas sim uma recordação do tempo em que as letras e palavras voavam as estepes em busca de objetos.

Após séculos circulando, aproximando-se e depois fugindo de materiais, lugares, seres e coisas, um evento inusitado ocorreu. Uma palavra apaixonou-se tão fantasticamente por um ser inanimado que dele não mais quis se distanciar, e passou a viver uma relação de perfeita fusão, ou simbiose e, não mais que de repente, a palavra passou a significar o objeto, e o objeto tendia a ser conhecido pela própria palavra. Era o começo da era dos Ukuluns conhecida como ‘Era da significação’.

As palavras começaram a correr atrás de tudo o que existia para se apaixonarem e viverem a sua história de amor eterno. Tudo que até então existia passou a estar agregado a alguma palavra, em um romance que se dizia eterno e que se chamaria, segundo o vernáculo do futuro, denotação. A denotação ou significado denotativo era o nome do romance que se queria eterno, entre as palavras e as coisas.

Hoje quando acordei as palavras haviam fugido de meu dicionário, e as páginas do meu velho livro amanheceram em branco. Estamos no século XXI e é um tanto mais difícil acreditar que as palavras saíram para passear e branquearam as minhas páginas. Talvez algum efeito cientificamente explicável, ligado à tinta ou ao papel, seja mais factível.

A história que eu desejo contar não termina aí. Não chega ao fim com a fuga das letras inanimadas, em busca de objetos de furtiva paixão. Assim como no mundo dos homens, no mundo das palavras os amores não são eternos, e algo que hoje se conhece por certa palavra, no futuro poderá ser conhecida por outra palavra.

Se nos tempos dos Ukuluns assim foi, nos tempos dos pós-modernos em que vivo este movimento parece ser diferente. Hoje vivo o tempo das palavras fugitivas. O tempo das palavras que deixaram meu léxico para correrem atrás de outras formas. A fuga das palavras é o tropeço da verdade!

O que é honestidade? Democracia? Direito? Justiça? Essas provavelmente foram fugitivas de primeira hora que abandonaram meu dicionário. Palavras corredoras à procura de objetos num mundo pós-moderno, pré-histórico, para aquém dos Ukuluns.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

O MAGISTRADO E A REPÚBLICA

Na França revolucionária, em meio a muitas xícaras de chocolate, e provavelmente em uma mesa simples, no interior do Le Procope – um café até hoje existente na ‘Rua da Antiga Comédia’ - Voltaire ousou sonhar com a igualdade entre os Homens perante o Estado.

Ele, que vinha da França aristocrática, onde as pessoas possuíam valor apenas em razão de sobrenomes, dos títulos nobiliárquicos, das propriedades e das riquezas, imaginava uma República onde a vida poderia ser vivida debaixo de um único conceito, mais humano e mais honesto: citoyen!

Acreditou, certamente, na Justiça que não conhece rosto, dinheiro ou poderio. Sonhou uma Justiça criminal onde as leis são aplicadas independentemente das vontades privadas, acostumadas a submeter o Estado e a corromper verdades. Certamente Françoise-Marie Arouet acreditou em um mundo onde o juiz criminal não seria submetido a opressões, calúnias, difamações e perseguições pela só razão de cumprir a sua função.

Imaginou, com segurança, que não existiriam, em um futuro próximo, a soberba de quem se sente acima da lei, e nem a indignação incontida de alguns homens em razão de um processo. A idéia de cidadão não era condizente, para Voltaire, com homens que concebem a si mesmos, como indivíduos a latere de qualquer ação do Estado, acima de qualquer normatização, pairando sobre qualquer crítica. Era a década de setenta, e do século XVIII!

De lá para cá o Estado mudou consideravelmente, mas algumas coisas não mudaram! As liberdades civis ampliaram-se, e os direitos humanos, que nasceram para proteger os homens do Estado, passaram a ser a razão mesma do Estado. A Justiça criminal passou a ocupar a função de também julgar os indivíduos em razão do assalto e da rapinagem de bens públicos e a permitir investigações dos atos de quem vê no patrimônio comum o combustível para o enriquecimento particular.

Mas o juiz desejado pelo iluminismo também é o avesso do que se percebe em Villefort, o conhecido Procurador Régio que condena ao Château d’If Edmond Dantes, no celebre romance de Alexandre Dumas. Ele é um juiz equilibrado, atencioso com as partes, que não se deixa enganar por acusadores e nem se amedronta frente aos esbirros. Ao magistrado sonhado por Voltaire não é dado o direito à sedução, e a ele não é permitido sequer perceber quaisquer propostas implícitas – ainda que recheadas da elegância cordial das academias - mas que tenham por objetivo ceifar o cumprimento da nobre função de ser correto.

A este juiz ideal é imperioso compreender que todo aquele que é submetido à ação da Justiça tem o sagrado direito a malquerença. Todo réu, todo investigado, e todo criminoso tem o singular direito de identificar no magistrado que julga a causa o seu supremo inimigo, o responsável por todos os seus atos, e o único a ver seus mais diversos delitos. Também ele, o juiz, tem de conviver com a idéia de ser julgado e analisado durante todos os seus dias, além de ser difamado e acusado de agir, impunemente, para a realização de seus próprios desejos. Nada mais natural do que o humano direito de culpar terceiros por seu próprio fracasso.

Em tempos de pós-modernidade são muito importantes as lições de uma República, na qual a justiça, as igualdades e as liberdades são acessíveis aos cidadãos. Infelizmente, esta compreensão de igualdade, base do sentido moderno de República, não é partilhada por todos.

Entender que o sentido do substantivo que nos qualifica – como se adjetivo fosse – reside exatamente na idéia de coisa pública, de espaço de todos, regiamente direcionada pelo senso de igualdade, às vezes é tarefa impossível. A República precisa ser mais uma vez, e sempre, fundada.

O exercício da jurisdição criminal nada mais representa do que um exercício de Republicanismo e de cidadania. Mesmo que este exercício seja vilipendiado, e seu autor tenha de suportar ameaças, difamações, tentativas de achaque e tentativas de constrangimento, é preciso guardar a lhaneza e a tranqüilidade para lembrar que se é, acima de tudo, servidor público.

O juiz imaginário, pensado por Françoise-Marie Arouet, sempre saberá que ninguém está acima das leis e do espaço público, mesmo que em dados momentos, e em dados lugares, seja necessário reinventar a República, ou mesmo instaurá-la, pois é certo que a alguns quadrantes do globo ela parece nunca ter chegado.