terça-feira, 28 de setembro de 2010
QUANDO OS LOBOS SÃO MUITOS
Esta decisão foi absolutamente democrática, na medida em que dela participaram todos os cidadãos de nosso país fictício, houve procedimento que levou a decisão, e a ordem de execução partiu de uma ampla maioria.
Como o nosso exemplo bem demonstra, a democracia absoluta pode conduzir a uma atrocidade, e a negação da própria racionalidade. Quando leio e quando ouço expressões como “tudo pela democracia” penso sempre em todo o mal que o mundo já experimentou em razão de decisões, julgamentos e compreensões vindos da maioria.
Isto não quer dizer que a nossa sociedade duodecimal seria mais justa e mais feliz se apenas dois – diferentes ou iguais – resolvessem, com base em alguma lei, escravizar os outros dez, optando sozinhos por suas idéias de justiça e correção. Se algumas regras imemoriais justificassem o direito dos dois líderes hipotéticos de se sobreporem aos dez, até poderíamos ter leis sendo executadas, mas estaríamos ferindo da mesma maneira a racionalidade.
Como fica claro facilmente na simplória leitura do nosso segundo exemplo, o direito também pode comportar um mal.
Estamos sempre entre duas antíteses que exercem uma tensão entre si, em movimentos opostos: de um lado o direito, do outro, a democracia. Embora o direito tenha origem na idéia de maioria – posto que as leis são feitas por um Poder democrático – a sua aplicação sempre se dá pelo único dos Poderes estatais que não é, e nem pode ser democrático: o Judiciário.
Há sempre dois fantasmas que se escondem e estão à espreita do mínimo deslize em cada um dos pólos. Há o fantasma do direito, e também há o fantasma da democracia. O autoritarismo, que sempre se apóia no direito, e o totalitarismo, que sempre se justifica na vontade da maioria. Ambos são opressores, ambos sufocam as diferenças, ambos agridem a racionalidade.
Este é o paradoxo de toda compreensão política, ou o “paradoxo da democracia” como quer a cientista política e filósofa belga, de origem indiana, Chantal Mouffe. O nosso grande desafio é equilibrar este pêndulo e permitir que o direito reduza a tendência totalitária da democracia, e que a democracia reduza a tendência autoritária do direito.
Por esta razão, é preocupante ver os exercícios de demonstração da ‘vontade do povo’, em julgamentos populares que se realizam através da imprensa, ou da internet, e utilizando-se do senso comum. Também pode ser assustador ver a tentativa de encontrar o ‘espírito do povo’ em manifestações que se autodenominam ‘tribunais populares’, ou ‘tribunais da terra’ ou algo que o valha. Enquetes populares também se manifestam com a mesma virulência desarrazoada.
Estes julgamentos construídos para dar vazão aos anseios imediatistas ou perenes da maioria não diferem muito da decisão de soltar Barrabás e condenar Jesus à crucificação, o que parece ter sido injustificável até mesmo para um agnóstico.
Ainda que movida pelas razões certas, as decisões da maioria podem sufocar a racionalidade, e deixar de lado as maiores conquistas da modernidade.
Acaso Hitler era um homem apenas, ou trazia consigo todo um país que se deixava caminhar naquela direção? Está claro que suas decisões foram toleradas e aprovadas pela maioria do povo alemão, e isto se constitui em um trauma da modernidade.
Da mesma maneira, Mussolini e Hugo Chaves também se apóiam na regra da maioria. Não foi diferente com Juan e Evita Perón e com tantos outros delinqüentes estatais.
Isto não quer dizer que devamos permitir a ditadura de poucos autoritários, quer apenas deixar claro que não é possível submeter aos desejos plenos e da maioria direitos que são caros à idéia de pluralidade, de diferença e de tolerância.
Até posso concordar com o pensamento segundo o qual “para o direito nem sempre basta cercar as ovelhas. Às vezes é preciso gradear a toca dos lobos”. O problema é que a modernidade e a racionalidade ainda não conseguiram dizer, com certeza, quem são os lobos e quem são as ovelhas. E, pior, muitas vezes as ovelhas, todas elas reunidas, tendem a se transformarem em lobos sanguinários, ou a utilizar o rótulo de ‘lobo’ para gradearem os pastos de outras ovelhas.
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
O TROCO E A TROCA
OS JUÍZES E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O fato de alguém ser magistrado não o dota de qualidade específica ou lhe atribui condição superior aos demais cidadãos para interpretar a Constituição. Dar significado aos dispositivos constitucionais não é privilégio de quem segue a carreira de juiz, pois a atividade político-interpretativa pode ser exercida por qualquer pessoa integrante da comunidade. A boa interpretação sequer é privativa dos operadores forenses e dos acadêmicos, embora seja difícil localizar a pré-condição de “notável saber jurídico” em quem não seja bacharel em direito.
sexta-feira, 9 de julho de 2010
UNIVERSIDADE E TOTALITARISMO
Os apologistas do nosso tempo sugerem ao debate o neoconservador Francis Fukuyama para dizer que a caminhada acabou, e chegamos, em fim, ao ‘fim da história’.
segunda-feira, 28 de junho de 2010
MARX ESTÁ MORTO.. E NIETZSCHE TAMBÉM
O maior cientista político italiano da segunda metade do século XX suscitou a discussão acadêmica em torno da sobrevivência da dicotomia ‘direita e esquerda’. A questão teórica e prática - que tomou conta das ditas novas esquerdas depois da queda do muro de Berlin - longe de estar superada, revela-se muito importante para a compreensão do mundo latino-americano nesta primeira década, do novo século.
Norberto Bobbio certamente não esquadrinhou todos os pontos da questão, mas o seu ‘pequeno grande livro’ continua chamando à leitura os livres pensadores. ‘Destra e Sinistra’ – título original em italiano - tenta responder a uma pergunta da intelectualidade do século passado, mas aviva problemas da nossa própria realidade.
Quem é de esquerda? Que governos são de esquerda, ou marxistas? Os aliados construídos nas contingências eleitorais são agora, milagrosamente, eles também, de esquerda, e simpatizantes de Marx? Alguém ainda o é nos moldes de Josef Stalin ou Erich Honecker? E Karl Marx, ainda está vivo para fortalecer os nossos sonhos e os nossos desejos de igualdade?
Certa vez, na Itália, li pichada em um muro da universidade de Lecce, onde eu estudava, frase repleta deste sentimento pós-moderno de perda de referencial: “Marx está morto, Nietzsche também, e eu não me sinto muito bem”! Anos depois encontrei esta mesma frase em um livro de Zigmunt Baumann.
Na confusão da ausência de identidade teórica, ainda há a diferença entre direita e esquerda? E se há alguma diferença, ela ainda é importante?
O marxismo atraiu diversas mentes brilhantes em todo o mundo no século XX, e por diversas razões. Para diversos pensadores, como Maurice Merleau-Ponty, era simplesmente por que não se tratava de “uma” filosofia da história, mas “a própria” explicação do processo histórico.
Mas a verdadeira razão de tantas mentes brilhantes terem se dedicado ao marxismo e às esquerdas, conforme o polonês Leszek Kolakowski, reside no fato da teoria de Marx ser uma filosofia ampla, explicativa da seta da história e que prometia um futuro igualitário, onde homens e mulheres não conheceriam a diferença que causa inferioridade. Uma conjugação de racionalismo histórico com idealismo otimista.
Marx não poderia imaginar que não seriam os trabalhadores das grandes cidades a tentar construir a igualdade, mas sim uma casta intelectualmente privilegiada, depois militarizada, em um país atrasado, semi-feudal e corrupto: a Rússia. Nem poderia supor que tal controle burocrático e redutor das liberdades fosse se estender de forma totalitária a todo leste europeu.
Como nos diz Tony Judt, os melhores alunos do marxismo terminaram sendo uma “camarilha de tiranos”.
Também ele, Marx, não poderia prever que sistemas políticos vazios de conteúdo, no todo igualáveis às suas próprias antíteses, se utilizariam da mensagem do marxismo para praticá-lo de forma equivocada, caudilhesca e populista em um autêntico baile de palavras, onde tudo aquilo que fora combatido na origem, não mais que de repente se tornaria aceitável, palatável, e aliável.
Eric Hobsbawm, O lord da esquerda inglesa, ou o ‘Mandarim Comunista’ foi o historiador responsável por toda a formação de pensadores de minha geração que abraçaram a compreensão marxista da história, por verem nela não apenas uma grande narrativa das nossas vidas passadas, presentes e futuras, mas principalmente por vislumbrarem uma esperança na construção de um universo de iguais.
Hobsbawm aceitou academicamente, e passivamente, os desvios da história do comunismo marxista-estatal, principalmente no leste europeu. Talvez o velho Mandarim não perceba hoje uma negação estrutural do marxismo consistente na aliança em outras partes do mundo, dos ditos marxistas com banqueiros corruptos, empresários mal intencionados e políticos fisiológicos.
Talvez sequer veja mal no fim das liberdades de imprensa, na redução do direito à diferença, nas relações amistosas com criminosos e na manutenção de “tudo como era dantes, no quartel de Abrantes”, como diriam os portugueses que não fizeram a Revolução dos Cravos.
Não é possível pensar como Bobbio, o velho professor italiano, acerca da diferença entre direita e esquerda! Não é possível vê-la no horizonte.
No mundo pós-moderno, no Brasil do século XXI, e no Maranhão dos anos 2010 a prática venceu a teoria, e fundiram-se as antíteses teóricas. A prática - como projeto de poder - engoliu a teoria, como desejo de realidade.
Cabe aos velhos marxistas, oposicionistas de todos os regimes, e quase ídolos de meu tempo, fornecerem as respostas à pergunta do poeta Vinícius de Morais, quando em música interrogou o seu Criador:
“Pergunto a Deus, escute amigo: se foi para desfazer por que é que fez?”
Marx está morto.... Nietzsche também...
quinta-feira, 17 de junho de 2010
BAFANA-BAFANA: QUEM SOMOS NÓS?
Diante de seus interrogadores e juízes, ávidos por encontrar respostas para centenas de mortes, o criminoso de guerra apresentou-se ao mundo como um homem normal, que conservava a sua racionalidade na vida cotidiana. Isso era chocante! Como era possível levar filhos a escola, ir normalmente a missa, dar presentes no natal e ao mesmo tempo praticar tantos horrores?
Matar demonstrou-se banal! Segregar, remeter homens - filhos de outros homens - para guetos e campos de concentração, e exterminar os diferentes considerados inferiores mostrou-se simples, quase casual.
É da essência do totalitarismo o desfazimento da condição humana. E quando a humanidade mergulha em defesa de uma idéia que se apresenta como compreensão perfeita e total, isto pode ser mais poderoso que a racionalidade moderna, pondera Hannah Arendt.
O holocausto era uma atitude que soava como desejo da maioria de um Estado, era tolerado por vários outros, e era, em fim, para desespero da racionalidade, algo normal para mais que alguns homens que puderam ser classificados como loucos.
A normalidade do execrável chocou os racionais modernos.
Os filhos da segunda metade do século XX defendem as suas parcelas de razão e seus espaços de modernidade, e deixam claro que o ocorrido foi um acidente, um atropelo do mal no século que já se foi. Para benefícios de suas consciências defendem que o holocausto não possui nenhuma relação com as nossas práticas de Estado e de sociedade atuais.
Será mesmo assim?
Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, o Marquês de Condorcet, em plena revolução francesa escrevia sobre a solidariedade, sobre a fraternidade e abominava o utilitarismo revolucionário do pequenino Maximilien François Marie Isidore de Robespierre.
Mesmo naqueles idos, quando a igualdade entre credos, cor da pele, sexo e habitat não pareciam consequencia natural da humanidade... mesmo em época como aquela em que nasceram os ideais de liberdade, fraternidade e igualdade, havia quem se deixasse levar pela compreensão total do mundo, e usasse a guilhotina como arma para ceifar cabeças: no sentido figurado e também denotativo.
A desconsideração com outros homens, e o desvio moral e humano de tratá-los como objeto está fincado no coração do mundo moderno, e não deve ser compreendido apenas como desvio da sanidade, mas como possibilidade das nossas existências. Desconhecer o ‘mal’ não nos protegerá dele.
Não faz tanto tempo, após o holocausto e no tempo em que os quarentões de hoje freqüentavam a escola, o país que hoje sedia a copa do mundo de futebol segregava brancos e negros, separava as vidas pela cor da pele. E o Estado também matava os subjugados, quando se sentia ameaçado.
Era o regime do Apartheid!
Em Uganda, Idi Amin Dada Oumee, o “Açougueiro de Kampala” foi responsável por cerca de trezentas mil mortes. Anos depois, em 1994, quinhentos mil homens e mulheres Tutsis foram assassinados em Ruanda, pelas milícias Hutus.
Em todos estes casos, as mortes, as desconsiderações da humanidade podem ser consideradas pré-modernas, mas se deram por intermédio de homens que se abeberaram do pensamento ocidental. Idi Amin trabalhou no exército inglês; o dinheiro utilizado para financiar o genocídio de Ruanda foi desviado das ajudas internacionais que vieram do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial; o Apartheid, por sua vez, era tão somente um regime de colonos europeus brancos sobre uma maioria africana negra.
E ainda que não se fale em genocídio, o que dizer da utilização da miséria e da pobreza africanas apenas e tão somente para verter daquele continente ouro, diamantes, marfim e outras riquezas que lastram os países ocidentais racionais? O que dizer, também, da realidade exposta cruamente em “O Jardineiro Fiel” onde se vê a utilização daqueles homens iguais a nós, quando muito, como cobaias de pesquisas farmacêuticas internacionais?
O olhar romântico e festivo do mundo ocidental sobre o continente africano falseia o tipo de relação que nós possuímos com a mãe África. Falseia o cisma na racionalidade que a história recente daquele continente causou, tal e qual o holocausto. Este olhar é exercitado por europeus correndo o risco de ser hipócrita; é exercitado por nós latino-americanos sem nos darmos conta de que ele pode ser apenas uma forma de não enfrentarmos nossos próprios demônios.
A jabulani rola. As vuvuzelas troam. Nós ouvimos. Nós aplaudimos. E o mundo segue.
Bafana-Bafana significa “garotos-garotos”. A África conserva a alegria dos meninos que se maravilham com o mundo. Eles sabem quem são. Nós talvez não saibamos quem somos nós.
sexta-feira, 4 de junho de 2010
O DIREITO E A PÓS-MODERNIDADE
A sociedade, ao modificar a sua forma de ser, e ao diferenciar a leitura que ela própria faz de si mesma, transforma obrigatoriamente o discurso do direito, que se diferencia do discurso jurídico moderno, ao menos em parte. Trata-se de uma diferenciação natural que surge para adequar a aplicação do direito às novas hipóteses fáticas e às novas conformações da sociedade.
Estar imerso em algo que se diferencia do moderno, mesmo reconhecendo todas as conquistas que a modernidade trouxe para a humanidade, significa conviver com o novo e com o inesperado. Este reconhecimento não pode confundir-se com o discurso da anti-modernidade. Viver a pós-modernidade é vivenciar diferenciações discursivas e concretas que fazem deste período da história das sociedades algo mais complexo do que qualquer outro em toda a vivência do homem.
Embora não haja uma unanimidade acerca do que significa o termo pós-modernidade , nem uma unicidade terminológica, é fácil perceber que todos os conceitos mencionam mudanças, diferenças, características desiguais em comparação as da modernidade.
O nosso mundo – temporalmente tomado - já está claramente diferenciado de outras realidades representativas de outros períodos no decorrer da história. A forma da sociedade já não é mais as mesmas.
É impossível dizer se isso é bom, ou se isso é mau. Muito provavelmente não há nem correção e nem acerto. Esta forma de viver é apenas a realidade, e nenhum discurso político, sociológico ou jurídico tem o condão de negá-la. Ela não é boa nem má, é apenas outra maneira de viver ‘o’ mundo e de existir ‘no’ mundo. É uma forma sensivelmente diferenciada daquela que possuíamos 50 anos atrás. O que há é uma diferenciação, e esta diferenciação comporta as análises dos diversos discursos hoje existentes, e que se distanciam cada vez mais do discurso moderno.
Há que se admitir que o pensar pós-moderno não pode, e nem deve, se apresentar como um discurso legitimador do neoliberalismo, ou uma negação das conquistas da modernidade.
Dizer que a sociedade adentrou na pós-modernidade não implica em negar avanços e conseqüências da modernidade, mas sim a constatação de uma diferenciação estrutural, ou discursiva, entre períodos muito próximos no tempo. A hiper-complexidade da sociedade permitiu mudanças profundas em espaços de tempo reduzidos.
Estas diferenças não podem ser creditadas apenas ao avanço natural do tempo, e são modificações profundas na maneira de ser e de pensar da maioria das pessoas.
A sociedade contemporânea é neoliberal. É uma sociedade que reduz a critérios econômicos a maioria de suas relações e desfaz parte do mito da unidade e do progresso em comunhão de propósitos. O neoliberalismo tem a cara do individualismo, e representa um modo de vida e de pensar que privilegia soluções econômicas em detrimento de opções morais ou éticas. As justificativas financeiras, aliadas a um verdadeiro domínio dos espaços públicos por forças privadas acarretam em uma des-humanização das relações sociais e uma entronização dos critérios econômicos em searas dantes colonizadas por uma moral kantiana ou um discurso dogmático positivo.
sexta-feira, 28 de maio de 2010
GRAMPOS E PORCOS
O DIREITO AMBIENTAL DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS
As mudanças climáticas propiciam o surgimento de novas tecnologias para serem usadas como instrumentos de enfrentamento da modificação das condições de vida no planeta. Dentre as tecnologias dos sistemas humanistas é possível destacar o surgimento do ‘direito das mudanças climáticas’. Visto sob a lente da dogmática jurídica, este modo de pensar as relações jurídicas ambientais constitui-se em uma ferramenta para a resolução de agressões humanas à sanidade do ambiente.
Esta abordagem das questões ambientais pelo discurso jurídico gerou um novo ramo do direito que se ocupa das mudanças climáticas, e se difere, por enfoque, por ângulo de enfrentamento e por objetivo, do moderno direito ao ambiente. Trata-se do direito ambiental das mudanças climáticas.
quinta-feira, 27 de maio de 2010
DESPEDIDA
Amigo. Imperfeitamente amigo.
Por ser indelevelmente humano.
Individual. Para ser irretorquivelmente único.
Pontual e finito. Como algo a ser levado consigo.
Amanheceu! Como amanhecerá todo fim de noite.
Alguém disse adeus! Como já disseram em muitas despedidas.
Não há novidades nos discursos, nas lágrimas e nas cartas.
Nada de novo, na cena de alguém que vai.
Ninguém encena um aceno diferente.
Nem mesmo o aperto de mão é outro.
É o mesmo de outro já esquecido.
O retorno é breve! Vai mas volta! Há uma parte que fica!
[Deixará marcas para sempre!
Todas as frases monótonas de uma mesma nova despedida.
Tolas hipocrisias vernaculares discrepantes
Da sincera perda medrosa de uma ausência sentida.
Eu comecei a me despedir quando nasci
Da parteira, do berço, do hospital, de minha mãe.
Separação da escola, da lancheira, das carteiras.
Das brincadeiras, das ruas e das ladeiras.
Deixei jogos, cervejas, festas e namoradas.
Os discos, os livros, o mundo e os desejos.
De tudo abandonei um pouco.
Deste pouco abandonaram-me muito.
A vida é despedida, e quando me despeço morro um pouco.
Já morri nas ruas, nas camas, nos romances.
Eu morri na Europa. Eu morri nas praias.
Morri em frases e em sorrisos.
Morro todos os dias quando acordo.
Morro todas as noites quando durmo.
Não quero mais me despedir.
Nunca mais quero o abandono.
Não quero deixar de ser.
Nunca mais morrer, não quero.
Na festa em que ruidosos homens se abraçam,
Onde mulheres choram e olham o futuro.
Eu me sinto ausente e morto.
Não me despeço. Para que não se disperse quem sou.
Engano-me, pois sei que é preciso.
Partir é necessário, é imperativo.
É obrigatório que parta e que conquiste.
E que fique o tempo mais lento, devagar.
Ele é sempre mais lento para quem fica.
É sempre mais veloz para quem vai.
Mas não sou hipócrita.
Não digo vá!
Não minto falando ao microfone: vá!
Sou humano, pegajoso e egoísta.
Cá, frente aos meus olhos. Já, ao lado dos nossos.
É a parcela de palavra que me cabe.
È o pouco que me resta como irmão.
E o medo da despedida é a sombra.
O pânico da partida é o negro vulto.
O desespero da ida é a escuridão.
A dor da viagem é a ausência de luz.
E que claridade é essa que eu temo a falta?
Qual a luz essencial que eu temo o apagar?
O terror atenderá pelo nome de esquecimento.
A luminosidade se reconhece na confiança eterna.
E de quanto eu posso falar!
Do muito que éramos e do pouco que somos!
Mas posso dizer que a estranheza e o esquecimento
São dragões odiosos que engolem a luz.
Mas há uma festa, uma enorme festa.
E na festa não cabe medo, não há lugar para receio.
Mas há medo, e o medo festeja por mim.
É o temor da perda do que é essência.
É a um só tempo reconhecimento de tudo.
Da amizade, da proximidade, da cumplicidade.
Irrompe a despedida – dizem – é o destino.
Mas ele existe, ou o fazemos? Inevitável?
Penso na distância... uma sensação.
Proponho a sua inexistência.
Relativizo a advertência do espaço,
Sinto-me perto, sem sê-lo de fato
Perto quando precisamos.
Irmãos quando desejamos.
Mas há uma festa, e dizem, é de despedida.
E o que há para festejar, então?
Acaso a partida merece aplausos?
Ou o aplauso é mera formalidade com faustos?
Ei-lo, ei-me. Repletos e nunca completos.
Diferentes e iguais. Comuns e especiais.
Partimos e morremos. Vamos e ficamos.
Aceito. Orgulho-me. Mas não conte comigo para despedidas.
Tente ir, sem partir.
Veja se vai, sem deixar.
E guarde consigo onde quer que esteja.
A mais perene de todas as certezas.
Amigo!
* Autor: Ney Bello Filho, Livro Cartografias Heréticas.
sexta-feira, 21 de maio de 2010
O BAR DO MOSCA
Karl Marx era nosso companheiro eterno, e o regime militar era o “cachorro da festa”, que todos nós chutávamos com afinco. Chico Buarque, Vinícius de Morais, Garcia Marquez e Josué Montello eram visitantes sempre ilustres, e não raro surgiam outros passantes menos habituais, como Nauro Machado, Paulinho Pedra Azul, Flávio Venturini, 14 Bis e Mercedes Soza. Nada de música yankee. Nada de literatura imperialista. Quando muito um pouco de Beatles, e com alguma desconfiança. Ou um tantinho de Hemingway e Faulkner, mas com vigilância redobrada. E um brinde a Pablo Milanes!
Todos nós bebíamos ‘Cerma’, a cerveja mais barata dos bares citadinos, pois arrancar uma grana para beber Antártica era um pouco mais difícil. Quando pintava um vinho era o bom e velho “Tamandaré”, quando não era sucedido pelo Fiel “Sangue de Boi”. Whisky era quase impossível, a não ser como rescaldo da farra de algum dos nossos pais. E mesmo assim furtado, pois nenhum deles admitiria os filhos de quinze, dezesseis ou dezessete saírem de casa com uma garrafa de escocês.
Lênin também era habituée das rodas, e só superava o herói da Ilha, literalmente, já que vínhamos todos de ler Fernando Morais. E um brinde ao companheiro Fidel!
E a Guerra do Paraguai então? Genocídio Americano todos nós lemos e quase decoramos. E tinha quem puxasse um brinde a Solano Lopez.
Decididamente não era um boteco, era um complemento da escola. Papo de bêbado, papo de apaixonado, papo de esquerdista, e até mesmo papo de crise existencial rolava no “Mosca”. Só não pintava papo de mauricinho, conversa de playboy, e gosto de “filhinho de papai”. Mosca não era lugar para “boi-de-botas”, como dizíamos. Afinal, “nós somos nós, e boi não Lambe. E se lamber, nós corta a língua, pois chapéu de otário é marreta”. Entre “Cermas” quentes e queijo coalho gelado dizíamos isso de todos, e de nós mesmos. Não era um boteco. Era instituição. Era cultura, literatura, política e sociedade. Discurso jurídico veio algum tempo depois, mas aí já estávamos em busca do “Ponto de Fuga”.
A Geração “Bar do Mosca” possui hoje entre 40 (quarenta) e 44 (quarenta e quatro) anos. E ainda tem horror a playboy e mauricinho. Ainda discute política, cultura, literatura e sociedade. Todos pensam o Brasil, o Maranhão, São Luís e o mundo.
Talvez agora continuemos discutir aqui: No “Geração Bar do Mosca”.
AS PALAVRAS E OS HOMENS
As informações que chegaram até nós vêm apenas de inscrições cuneiformes que são interpretadas e traduzidas por arqueólogos de uma única universidade, localizada no sul da França. Trata-se de uma civilização esquecida que se construiu pela palavra.
Ao invés de criar a sua própria linguagem, a civilização dos Ukuluns foi criada por ela. Eles são fruto das palavras pronunciadas e escritas, são conseqüências das letras arregimentadas para formarem sons. Até então, as palavras eram desprovidas de qualquer sentido.
Antes do acontecimento aqui narrado, elas eram apenas letras agarradas umas as outras em razão da necessidade de sobrevivência, pois o viver e o morrer eram fatos condicionados às possibilidades físicas dos seres pronunciarem-nas. Acaso uma letra se juntasse a outra sem que a união permitisse qualquer som emanado pelos trogloditas existentes nas estepes, a palavra nascente seria esquecida, e então estaria condenada a morte. O esquecimento da palavra era a sua sentença de morte, e o instinto de sobrevivência é que fazia com que as letras se agregassem de uma maneira ou de outra.
Conforme sabemos, em uma manhã invernal as palavras fugiram das escrituras e das bocas, e ganharam o mundo. Em fuga, diversas delas despedaçaram-se em letras, ditongos, tritongos, hiatos e sílabas - agudas e tônicas. Foi uma festa pagã, por assim dizer, de palavras - inteiras e mutiladas - que, em fuga para ganharem o mundo, divorciaram-se da tirania dos sons e das leituras ininteligíveis, e percorreram todos os limites do mundo conhecido. Não percorreram os quatro cantos por que, segundo se sabe, as estepes eram circulares, o que permitiu as palavras apenas circularem pelo mundo conhecido.
Sabe-se que as vogais foram se aproximando das coisas mais simples, mais terrenas, mais amenas. Chegaram mesmo a se afeiçoarem às coisas vivas, dando leveza e desenvoltura às matérias as quais se aproximaram. Já as consoantes, mais duras, mais inflexíveis, tenderam a chegar perto das coisas complexas, do metafísico, do etéreo, do intangível.
Não havia, até então, homens para delas se apropriarem, e as palavras corriam soltas, aproximando-se de um lugar qualquer para logo em seguida alçarem vôo em direção a outros objetos, outros seres e outros elementos. É provável que a idéia segundo a qual é através das palavras que se pode pensar e, portanto, voar, não fosse uma metáfora, mas sim uma recordação do tempo em que as letras e palavras voavam as estepes em busca de objetos.
Após séculos circulando, aproximando-se e depois fugindo de materiais, lugares, seres e coisas, um evento inusitado ocorreu. Uma palavra apaixonou-se tão fantasticamente por um ser inanimado que dele não mais quis se distanciar, e passou a viver uma relação de perfeita fusão, ou simbiose e, não mais que de repente, a palavra passou a significar o objeto, e o objeto tendia a ser conhecido pela própria palavra. Era o começo da era dos Ukuluns conhecida como ‘Era da significação’.
As palavras começaram a correr atrás de tudo o que existia para se apaixonarem e viverem a sua história de amor eterno. Tudo que até então existia passou a estar agregado a alguma palavra, em um romance que se dizia eterno e que se chamaria, segundo o vernáculo do futuro, denotação. A denotação ou significado denotativo era o nome do romance que se queria eterno, entre as palavras e as coisas.
Hoje quando acordei as palavras haviam fugido de meu dicionário, e as páginas do meu velho livro amanheceram em branco. Estamos no século XXI e é um tanto mais difícil acreditar que as palavras saíram para passear e branquearam as minhas páginas. Talvez algum efeito cientificamente explicável, ligado à tinta ou ao papel, seja mais factível.
A história que eu desejo contar não termina aí. Não chega ao fim com a fuga das letras inanimadas, em busca de objetos de furtiva paixão. Assim como no mundo dos homens, no mundo das palavras os amores não são eternos, e algo que hoje se conhece por certa palavra, no futuro poderá ser conhecida por outra palavra.
Se nos tempos dos Ukuluns assim foi, nos tempos dos pós-modernos em que vivo este movimento parece ser diferente. Hoje vivo o tempo das palavras fugitivas. O tempo das palavras que deixaram meu léxico para correrem atrás de outras formas. A fuga das palavras é o tropeço da verdade!
O que é honestidade? Democracia? Direito? Justiça? Essas provavelmente foram fugitivas de primeira hora que abandonaram meu dicionário. Palavras corredoras à procura de objetos num mundo pós-moderno, pré-histórico, para aquém dos Ukuluns.
quinta-feira, 20 de maio de 2010
O MAGISTRADO E A REPÚBLICA
Ele, que vinha da França aristocrática, onde as pessoas possuíam valor apenas em razão de sobrenomes, dos títulos nobiliárquicos, das propriedades e das riquezas, imaginava uma República onde a vida poderia ser vivida debaixo de um único conceito, mais humano e mais honesto: citoyen!
Acreditou, certamente, na Justiça que não conhece rosto, dinheiro ou poderio. Sonhou uma Justiça criminal onde as leis são aplicadas independentemente das vontades privadas, acostumadas a submeter o Estado e a corromper verdades. Certamente Françoise-Marie Arouet acreditou em um mundo onde o juiz criminal não seria submetido a opressões, calúnias, difamações e perseguições pela só razão de cumprir a sua função.
Imaginou, com segurança, que não existiriam, em um futuro próximo, a soberba de quem se sente acima da lei, e nem a indignação incontida de alguns homens em razão de um processo. A idéia de cidadão não era condizente, para Voltaire, com homens que concebem a si mesmos, como indivíduos a latere de qualquer ação do Estado, acima de qualquer normatização, pairando sobre qualquer crítica. Era a década de setenta, e do século XVIII!
De lá para cá o Estado mudou consideravelmente, mas algumas coisas não mudaram! As liberdades civis ampliaram-se, e os direitos humanos, que nasceram para proteger os homens do Estado, passaram a ser a razão mesma do Estado. A Justiça criminal passou a ocupar a função de também julgar os indivíduos em razão do assalto e da rapinagem de bens públicos e a permitir investigações dos atos de quem vê no patrimônio comum o combustível para o enriquecimento particular.
Mas o juiz desejado pelo iluminismo também é o avesso do que se percebe em Villefort, o conhecido Procurador Régio que condena ao Château d’If Edmond Dantes, no celebre romance de Alexandre Dumas. Ele é um juiz equilibrado, atencioso com as partes, que não se deixa enganar por acusadores e nem se amedronta frente aos esbirros. Ao magistrado sonhado por Voltaire não é dado o direito à sedução, e a ele não é permitido sequer perceber quaisquer propostas implícitas – ainda que recheadas da elegância cordial das academias - mas que tenham por objetivo ceifar o cumprimento da nobre função de ser correto.
A este juiz ideal é imperioso compreender que todo aquele que é submetido à ação da Justiça tem o sagrado direito a malquerença. Todo réu, todo investigado, e todo criminoso tem o singular direito de identificar no magistrado que julga a causa o seu supremo inimigo, o responsável por todos os seus atos, e o único a ver seus mais diversos delitos. Também ele, o juiz, tem de conviver com a idéia de ser julgado e analisado durante todos os seus dias, além de ser difamado e acusado de agir, impunemente, para a realização de seus próprios desejos. Nada mais natural do que o humano direito de culpar terceiros por seu próprio fracasso.
Em tempos de pós-modernidade são muito importantes as lições de uma República, na qual a justiça, as igualdades e as liberdades são acessíveis aos cidadãos. Infelizmente, esta compreensão de igualdade, base do sentido moderno de República, não é partilhada por todos.
Entender que o sentido do substantivo que nos qualifica – como se adjetivo fosse – reside exatamente na idéia de coisa pública, de espaço de todos, regiamente direcionada pelo senso de igualdade, às vezes é tarefa impossível. A República precisa ser mais uma vez, e sempre, fundada.
O exercício da jurisdição criminal nada mais representa do que um exercício de Republicanismo e de cidadania. Mesmo que este exercício seja vilipendiado, e seu autor tenha de suportar ameaças, difamações, tentativas de achaque e tentativas de constrangimento, é preciso guardar a lhaneza e a tranqüilidade para lembrar que se é, acima de tudo, servidor público.
O juiz imaginário, pensado por Françoise-Marie Arouet, sempre saberá que ninguém está acima das leis e do espaço público, mesmo que em dados momentos, e em dados lugares, seja necessário reinventar a República, ou mesmo instaurá-la, pois é certo que a alguns quadrantes do globo ela parece nunca ter chegado.